Por Bruno Balbino Aires da Costa (Historiador e professor do IFRN)
Talvez, fosse interessante a um historiador, como eu, começar um texto citando algum acontecimento histórico. Como não me proponho a escrever um texto historiográfico, tenho total liberdade para não fazer isso. Então, começo pela literatura, mais especificamente por um pequeno excerto de uma das crônicas do livro A Alma encantadora das ruas (1908), de João do Rio: “E a detenção é a escola de todas as perdições e de todas as degenerescências. ”
Adianto-me a sua expectativa, caro leitor: o que você vai ler é, grosseiramente, um artigo de opinião. E qual é o meu posicionamento acerca do sistema carcerário do Rio Grande do Norte, levando em consideração as recentes convulsões sociais ocorridas em seu interior? Antes de responder, aviso: este texto não é uma intriga, no sentido grego do termo, acerca das tensões entre sociedade versus criminosos. Advirto-te ainda: não proponho uma lista de encaminhamentos para resolver o problema prisional do Rio Grande do Norte, como se o presente texto fosse um receituário de políticas de segurança pública. Nestas linhas tu não vais encontrar bravatas do tipo: “ – É preciso acabar com esses bandidos que aterrorizam os cidadãos de bem…”. Tampouco, caro leitor, tu te depararás com um discurso condescendente aos encarcerados. Afinal de contas, o que eu proponho? Uma questão apenas, qual seja: será a detenção a solução para a disciplinarização dos corpos numa economia de racionalidade jurídica penal?
A resposta não é simples, tampouco, fácil, ela é, acima de tudo e apesar de tudo, histórica. Volto à literatura para debruçar-me sobre a história. Se desejas realmente encarar o final deste texto, convido-te, caro leitor, a voltarmos ao depoimento supracitado de João do Rio. Para o cronista carioca, a prisão tem uma eficácia enorme em potencializar as possibilidades do encarcerado de apropriar-se das mais variadas mazelas sociais: “E em meio do charco, fatalmente destinada a desaparecer, a inocência, atirada ali pela incúria das autoridades, floresce”, descreve João do Rio. Este depoimento é de alguém que, mesmo escrevendo crônicas, resolve etnografar (?) as experiências mais sombrias (ironicamente encantadoras?) da cidade maravilhosa (sic). João do Rio vai à prisão da capital do país. Descreve-a, caracterizando-a como cubículo em que a promiscuidade enoja e toda infâmia desaflora. João do Rio pergunta: “ Quantos crimes se premeditam ali? Quantas perversidades rebentam na luz suja dos cárceres preventivos? ”.
Em grande medida, a pergunta do cronista carioca é a minha: a prisão funciona como elemento de regeneração dos encarcerados? A resposta do autor é clara: não! Esta resposta é também a minha? Respondo-a historicamente. De acordo com Michel Foucault, em sua obra Vigiar e Punir (1975), a instituiçãoprisão emerge no fim do século XVIII e princípio do XIX. Isso não quer dizer que as prisões inexistissem antes desse período.
O que Foucault chama a atenção é para a nova economia jurídica penal, que transforma a forma-prisão em instituição-prisão a partir de uma nova concepção de disciplinarização dos corpos, quando se instituíram, por toda organismo social, os processos para repartir, fixar e distribuir os indivíduos espacialmente, treinando seus corpos, codificando seus comportamentos, encerrando-os em uma dada relação de poder e de saber, etc. A irrupção da instituição-prisão, na passagem do século XVIII para o XIX, marca a constituição de uma nova legislação social que define o poder de punir, não mais aberto ao público, como nas decapitações em praças, como uma função geral da sociedade que é exercida de igual modo por todos os seus membros.
Nesse sentido, o novo reordenamento no sistema prisional fundamentou-se em dois elementos: a privação da liberdade e o suposto papel de transformar os indivíduos. Há um ponto em comum nessas duas fundamentações do sistema prisional: o critério a ser colocado vale para todos, portanto, é “universal e constante. ” O encarcerado tem sua liberdade restrita ao espaço prisional, recebendo a penalidade da sua infração de acordo com a quantificação em dias, meses e anos. Nesse caso, há uma semelhança com a própria dinâmica das sociedades industriais nascentes, em que o salário do trabalhador é quantificado a partir do valor da produção da sua hora de trabalho.
Nesses termos, a variável tempo, usada para quantificar a punição do encarcerado, para “pagar” o que ele fez, é uma leitura que se assemelha ao pagamento da jornada de trabalho de um operário, tipicamente das sociedades industrias da virada do século XVIII para o XIX. Assim, o indivíduo encarcerado paga pela sua punição com a privação da sua liberdade, como acrescenta Michel Foucault: “Sua perda tem portanto o mesmo preço para todos; melhor que a multa, ela é o castigo “igualitário. ” Além de privá-lo da liberdade, até que se cumpra o pagamento da sua infração, a instituição-prisão fundamenta-se numa prática que se constitui como sendo mais humanitária, pois coloca-se como transformadora do indivíduo encarcerado.
Ora, antes da emergência da instituição-prisão, a punição máxima que o indivíduo poderia ter não era uma questão de privação da liberdade, mas sim da perda de sua própria vida. A morte era a punição limite. Com a reordenação do sistema prisional no início do século XIX, a morte não foi mais colocada como a punição máxima para o indivíduo, pelo contrário, a vida do indivíduo foi preservada, embora limitada pela privação da sua liberdade e das práticas de normatização do seu corpo, com o intuito de corrigi-lo, transformá-lo. Assim, é adstrita a privação da liberdade do indivíduo, o teor técnico-médico de cura e de normatização do encarcerado. A partir dessa dupla fundamentação, a prisão é concebida como um espaço disciplinar de regeneração e de transformação do indivíduo. Foi essa fundamentação que construiu a ideia de que um dos papeis da prisão seria reinserir o indivíduo na sociedade, humanizando-o. Desse modo, a prisão é construída discursivamente e historicamente como a forma mais imediata e civilizada de todas as penas, consoante Foucault.
A partir dessa pequena genealogia histórica do sistema prisional, podemos compreender por que a conclusão de João do Rio, em sua crônica do início do século XX, é tão contemporânea. Senão, vejamos: o que levou o “Sindicato do Crime”, a liderar, da cadeia de Parnamirim, vários ataques a ônibus, micro-ônibus, prédios públicos em Natal e região? A versão oficial do governo interpreta o ataque como uma resposta dos carcerários à instalação de equipamentos de bloqueio de sinal de telefone celular no PEP (Presídio Estadual de Parnamirim). Em termos práticos, de que modo os encarcerados estão sendo “recuperados” socialmente? Os crimes cometidos fora e dentro do sistema prisional norte-rio-grandense não evidenciam o malogro do imaginário da regeneração do encarcerado? A prisão, de fato, normatizou esses indivíduos em prol de uma reeducação e readequação social? Se pensarmos em termos de privação da liberdade, podemos dizer que a prisão cumpriu o seu papel, o qual foi pensando, desde o início do século XIX, pelo menos até certo ponto. Mas no que tange à ressocialização do indivíduo em sociedade, a experiência histórica mostra o seu malogro.
Não estamos dizendo com isso que o sistema prisional é a melhor ou pior saída para solucionar os problemas da criminalidade. Longe disso, concordamos com Foucault: a prisão é um teatro artificial e coercitivo, é preciso refazê-la totalmente. A pergunta mais urgente é: como refazê-la? Não é o meu papel listar os caminhos. Sou historiador e não um especialista em segurança pública. A minha questão em todo este texto foi pensar historicamente, de maneira sucinta, é verdade, a emergência da prisão e como ela foi uma construção possível no tempo. A minha proposta não foi pensar as melhores medidas para resolver a crise prisional, mas partir da própria crise do sistema prisional para refletir a própria prisão. Ela é realmente eficaz? Ela deve permanecer? Historicamente, podemos afirmar que a prisão não corrige, não reeduca, salvo algumas raras exceções.
Historicamente, percebemos também que medidas paliativas não foram suficientes, nem indicaram o caminho para a solução. A Secretaria de Segurança Pública do governo do Rio Grande do Norte não resolverá o problema da prisão e dos encarcerados instalando suportes tecnológicos que inviabilizem ligações de celulares nas cadeias públicas do Estado. Tal empreendimento é tangencial, pouco efetivo a médio e a longo prazo. O sistema prisional é complexo, precisa ser repensando como um todo. É preciso reunir a inteligência do país ou do mundo para repensarmos a própria prisão. Talvez, a crise em seu interior aponte o caminho para essa reflexão. Por fim, gostaria de encerrar este texto da mesma forma que comecei. Trago novamente João do Rio: “Mas que fazer, Deus misericordioso? Nunca, entre nós, ninguém se ocupou com o grande problema da penitenciária. ”