Nunca fui um exemplo muito forte de feminilidade padrão. Unha eu faço quando por ventura lembro, alisamento não faço desde os 16 e salto alto só uso nesses eventos em que preciso não ser eu até que toque uma música rala-tcheca. Tenho incontáveis calças rasgadas devido pulos excessivos ou devido agachamentos indevidos por causa da hiperatividade: desde pequena meu ritmo é outro, meus anseios não são muito superficiais e, definitivamente, a estética física não é uma prioridade na imagem que quero imprimir para as pessoas. Acho que quanto mais bonito o que penso, melhor meu sorriso e é nessa bondade que preciso trabalhar, das 8 às 18, num sistema árduo e continuo.
Há alguns dias raspei o cabelo. Raspei por que? Raspei porque raspei, cacete, passei a 2 e tá passado, cresce, cabelo cresce, se cabelo fosse tão especial não nascia no toba, pronto, ‘cabou-se – eu diria a quem pedisse explicação. Sustentaria esse discurso durante a viagem de férias e voltaria pra casa dona de mim, mulherão, ninguém mexe, ninguém mexia.
Não é nem a coisa da siachância intransferível do ego ferido. Eu vivo essa dualidade: mesmo sendo a moça que rema focada contra a padronização, sou também uma defensora da minha insegurança, dos meus erros. Se você fala da mulher, não mexa no vespeiro. Sendo a alice-artista, prefiro me manter sem saber das minhas qualidades, que é pra linha das narinas seguir na horizontal e o pé grudadinho no chão (com a cabeça no ar).
Voltei centrada.
Mal o avião pousou em Natal e eu já ouvia de longe o tsunami de conselhos que nunca pedi: tem que sempre usar maquiagem que é pra não ficar com cara de menino, usa brincão grandão pra não parecer menino, e tenta estar arrumada, de salto alto também, eu sei que você não gosta muito mas tem que usar, que é assim que gostam de nós os meninos.
Os meninos. Os meninos. Ecoou na minha cabeça. Eu ainda sou a mesma Alice, gente, não mudei – pensei. E ficou por isso mesmo. Acho que não tive bolas o suficiente pra retrucar em voz alta(!).
Eu nado contra essa corrente desde que me entendo por gente, mas o machismo que nos inunda não é só uma marola, uma pororoquinha de chorume: é arraigado e forte feito mar revolto. Fadiguei. Ali refletida no espelho do banheiro me senti Sansão traído por Dalila, Rapunzel no alto da torre sem chance de salvação, era eu um ser cheio de medo do que diriam da minha aparência no rolé entre amigos. O mulherão se afogou.
Tentei por alguns dias ser a princesa dos cosméticos pra compensar minha ausência de feminilidade nas madeixas. Engraçado aquilo tudo, eu ali querendo me adequar. Adequar pra que? Pra não perder o que? Pra segurar quem? Pra me mostrar aonde? Não sei. Naquele espaço/tempo todas as mulheres do mundo eram mais lindas que eu, mais interessantes, mais pensantes, mais sexy. Naquele espaço/tempo claustrofóbico eu me desesperei com medo de perder coisas que nem me pertenciam porque eu não acredito em pertencimento, porque não é assim que eu vejo a vida nesse momento. Eu só conseguia maldizer sozinha o que dois palminhos de um amontoadozinho de fios fizeram comigo naquele espaço/tempo, mas nunca foi o cabelo.
Essa briga sub-aquática que tive comigo foi culpa do que nos contam as novelas, dos programas de TV, da falta de representatividade. Não é culpa minha nem sua, é das campanhas publicitárias sem mulher negra, sem mulher gorda, sem mulher que gosta de mulher, das revistas com “dicas” para mulheres baseadas na visão dos homens, com tudo tão baseado no que pensam sobre nós os homens – e eles sempre tão bons meninos.
Chega.
Depois de um banho demorado pra tirar o peso do brinco, da maquiagem e do salto, atentei pro fato de que embaixo d’água ninguém sabe que tá molhado, é no distanciamento da submersão que se tem essa noção. Talvez seja isso que aconteça quando bate assim essa falta de compaixão em nós mulheres: num mundo que gira em torno dos meninos às vezes a gente se pega reproduzindo opressão, refletindo-os, quase autoflagelação.
Me olhei de novo, de frente, de longe, nua, seca, eu. Retirar a “moldura do meu rosto” foi a melhor coisa que eu já fiz na minha vida que é esse quadro imperfeito porque, francamente, padrão é o caralho, aqui nada mudou.