Não se pode evitar sempre que o tiro saia pela culatra ou atinja o que não estava na mira. É impossível controlar plenamente a atividade humorística, dar-lhe uma finalidade, um imperativo categórico. No entanto, o senso comum aponta na direção oposta. Fala-se em aplicação terapêutica do riso, que o objetivo do humor é fazer rir, ou mesmo que o todo humor é político. Mas esse senso comum não resiste a um exame mais detalhado da atividade dos humoristas.
Vejamos, por exemplo, o cartunista Henfil. No livro “Como se faz humor político”, entrevista dada ao jornalista Tárik de Souza, Henfil insiste recorrentemente que o humor não possui necessariamente uma conotação ou finalidade política, inclusive discordando do próprio entrevistador. Recomendo a leitura pela fluidez da entrevista e pela importância do tema, além de perceber como os próprios humoristas pensam de sua atividade (tem pra baixar na net em pdf). Ele comenta ainda que não é possível ter controle absoluto do que faz; é como se os trabalhos que realizava se criassem por si sós, de maneira que em um momento ele precisa abandonar os personagens quando os rumos saíam do planejado. Exemplo disso é o Caboco Mamadô, que “enterrava” alguns contemporâneos seus quando os julgava coniventes com a ditadura então em curso. Basicamente, Henfil se lamentou tanto pela injustiça com que julgou alguns indivíduos (sei lá, de Carlos Drummond a Clarice Lispector e Elis Regina) quanto pelo resultado final, que às vezes não lhe era satisfatório.
Pois bem: nesta semana, Gregório Duvivier publicou no Facebook um mea culpa por uma piada machista que soltou no comício do PSOL-RJ, por ocasião da pré-candidatura de Marcelo Freixo à prefeitura do Rio de Janeiro. O humorista alegou que faltou empatia no momento, dando razão às queixas que lhe foram dirigidas. Em que pese o problema da empatia, tão enfatizada na pauta política da esquerda atualmente, gostaria de abordar o episódio por outro ângulo.
Talvez o problema com o episódio se explique não pela empatia, mas por Gregório Duvivier ter querido fazer graça. Millôr Fernandes escreveu, em seu “Decálogo do verdadeiro humorista” (no livro “Trinta anos de mim mesmo”), que o verdadeiro humorista deve ter pudor de fazer graça – e é o primeiro item do decálogo. A falha dele talvez tenha sido não apenas não conseguir atingir Pedro Paulo, mas sobretudo não transformar o feminicídio e a violência doméstica em material para algo humorístico. E sim, quando se trata de humor, é possível aproveitar um discurso opressor sem agredir o grupo oprimido. É no momento que trata de algo seríssimo que a potência humorística se faz sentir mais intensamente. No momento, o cara que mais tenho visto fazer isso com desenvoltura é André Dahmer. Diferenças estilísticas e genéricas à parte (um trabalha com a palavra falada e escrita, outro com imagens sequenciais), talvez Gregório aprendesse melhor com seu conterrâneo.
Isso não quer dizer que se deva passar pano na piada machista de Duvivier, ou que o mea culpa dele foi insatisfatório. Ele reconheceu a falta de atenção na hora em que comparou o estrago do Rio de Janeiro com a ex de Pedro Paulo. Só que, pelo que tenho visto do trabalho dele, o problema não foi a falta de empatia. A menos que ele descambe futuramente pra direita, como aconteceu com Paulo Francis, acredito que o exercício de empatia dele só tenha a aumentar. Isso vale também pra Marcelo Freixo e as demais pessoas que riram com ele na mesa e na platéia.
O problema está justamente na natureza da atividade humorística (se é que existe uma tal natureza; mantenho essa palavra na falta de uma melhor). Quem vive do humor dá com a língua nos dentes, com os burros n’água, tropeça, escorrega, bate com a cara no poste o tempo inteiro. Falo isso com o conhecimento de causa de quem dedicou o mestrado ao tema e vivencia a experiência humorística no dia a dia, de adotar mesmo o humor como visão legítima de mundo. Falo isso inclusive com a experiência de quem já deu (e dá) o mesmo tipo de vacilo que Duvivier. Quando menos espero, me pego rindo com uma piada racista, machista, LGBTfóbica, opressora de qualquer espécie – e sinto vergonha imediata no gesto. E, no entanto, essa claudicância é constitutiva do humor, e anda de mãos dadas com a prudência de não fazer graça que Millôr recomendou em seu decálogo.
O que isso significa, em termos políticos, ou mesmo mais práticos? Significa que a esquerda precisa estar atenta a essa caracterização da atividade humorística, mais do que o próprio Duvivier. Ele já deve ter atenção suficiente a esse problema, mesmo que não pareça. Sintoma disso é a declaração dele, no início do mea culpa, de que repete para si mesmo o mantra de rir do opressor e não do oprimido. Mas isso não o impediu de dar com a língua nos dentes. E isso nos leva à próxima lição: a atividade humorística não é racionalizável por completo. É por isso que não existe um controle pleno do humor, dos resultados que ele produz. Ou seja, sempre existe uma chance de Duvivier (e eu mesmo, como já afirmei acima) falar merda.
Curiosamente ou não, algo parecido acontece com a empatia. Pode-se racionalizar a empatia, dar-lhe fundamentos claros, explicar por que não se deve faturar com a dor alheia. Mas a empatia não consiste num exercício racional, ou pelo menos não na racionalidade ocidental tão largamente difundida há séculos, e que ainda permeia a própria esquerda – uma racionalidade que ainda insiste em se separar da afetividade de modo mais ou menos estanque. A empatia consiste na experiência das emoções, dos afetos, que são irracionais por definição, embora possam ser racionalizáveis. Mas há indivíduos que possuem empatia em tal escala que prescindem de qualquer justificativa racional para experimentá-la, e já se situam na pele do outro como se fosse a deles próprios. Não fazem distinção se é de perto ou de longe, se é amigo ou se não é. Na verdade, sequer precisam chegar no extremo de uma empatia generalizada: basta que haja a disposição para a sensibilidade instantânea ao sofrimento alheio.
Portanto, tendo o humor e a empatia características semelhantes, é possível que o indivíduo possua empatia por algo e o encare com humor, possua empatia e não o encare com humor, não possua empatia e não o encare com humor ou não possua empatia nem o encare com humor. Não usei “achar engraçado” porque humor não tem a ver necessariamente com graça ou diversão. Além disso, humor e empatia, mesmo compartilhando algumas propriedades, são irredutíveis e incongruentes entre si. É por isso que Gregório Duvivier soltou a pérola que soltou, mesmo com a empatia pelo sofrimento das mulheres. Mas isso não se previne com um aumento de empatia ou decréscimo do humor. Como afirmei acima, no humor a claudicância e a prudência andam de mãos dadas.
Ou seja, discordando do próprio Duvivier e finalizando aqui minha leitura do ocorrido: a falha do comediante não foi na falta de empatia, mas de prudência. Mas ele já aprendeu a lição, muito embora precise se lembrar disso vez ou outra. Isso não é algo ruim. É o reconhecimento da própria incompletude e da necessidade de contínuo aperfeiçoamento, num trabalho ingrato e digno do castigo de Sísifo. É nisso que consiste a prudência humorística: sempre lembrar que eu compartilho os mesmos defeitos que o outro e lidar com esse problema sem subjugá-lo nem me submeter a ele.