Por Gabriel Miranda
Mestrando em Psicologia – UFRN
A construção social do macho é um tema que tem, há algum tempo, me despertado preocupação, haja vista que nenhum homem está isento desse processo de “machificação”. Desde muito cedo, os ainda meninos se deparam com uma série de normas que deverão orientar suas experiências no mundo. Ainda nas primeiras horas de existência são alvos de comentários acerca de seu órgão sexual e do poder fálico na sociedade patriarcal. Comentários como os que seguem ilustram o teor desse momento: “esse aí é macho, mesmo” “olha esse pirocão! Ainda vai fazer muito estrago”. No decorrer da infância, são forçadamente condicionados a agir de modo a afirmar as expectativas da sociedade -e portanto, de seus pais-, e encarados como anomias quando fogem à estas expectativas. Em outros termos, devem optar por qualquer cor, exceto rosa; devem demonstrar coragem, caso contrário serão adjetivados de “frouxos” ou “moles”; e evidentemente também há a lista das brincadeiras proibidas e esperadas para um menino, que provavelmente vocês já conhecem. No início da adolescência, a consolidação do macho mirim se encontra bem encaminhada quando o adolescente entende que não é legal chorar ou demonstrar sentimentos em público, e que para não carregar consigo o estigma de frouxo é preferível optar por resolver problemas através da violência física.
Durante a adolescência, a ideia de que a figura masculina é diferente da feminina é consolidada. O masculino, para o imaginário social, é forte, corajoso, poderoso, é, afinal, o provedor familiar. E o feminino? O que representa o feminino? Bem, já notaram que quando se quer inferiorizar o outro, o feminilizamos? Não?! Então tá, “mulherzinha”. Mas não feminilizamos o outro apenas com esta expressão, há uma infinidade delas, tais como: “marica”, “bicha”, “florzinha”, e tantas outras expressões que denotam não apenas o caráter misógino, mas também homofóbico das relações sociais. Contudo, as relações entre masculino e feminino não terminam por aí. É na adolescência que os meninos aprendem uma lição que alguns irão levar para o resto de suas vidas: uma das mais eficazes maneiras de mostrar poder e riqueza é através do domínio sobre a mulher. Na adolescência, isto significa “pegar” e “comer” o máximo de mulheres. E na fase adulta… também. Com a ressalva de que na fase adulta você deverá estar casado com uma “mulher que é para casar”, a qual também poderá ser traída sob a desculpa dos argumentos mais rasteiros possíveis. Vale ressaltar que, no “mundo dos machos”, o adultério vale 100 pontos. Cumulativos.
Se por um lado, é incentivado uma vida (hetero)sexual “libertina” às pessoas do sexo masculino, tal prática é condenada quando protagonizada por pessoas do sexo feminino. O que vemos nas redes sociais, programas de televisão e nas conversas cotidianas é que existe, no imaginário social, duas figuras que constituem o grupo de pessoas do sexo biológico feminino: a mulher e a puta. A figura da puta, construída socialmente em um Estado marcado pela forte presença do patriarcado, é aquela que vem sendo constantemente apontada como merecedora da violência verbal, física e sexual. Vale lembrar que os mesmos algozes – em sua maioria pessoas do nosso convívio- que advogam ou justificam esse tipo de violência contra as mulheres também advogam e justificam as violências cometidas contra os jovens negros e pobres das periferias brasileiras.
Beatriz, a adolescente vítima de um estupro coletivo protagonizado por mais de trinta criminosos no final do mês passado, é mais uma vítima dos machos construídos nas famílias, escolas, igrejas e demais espaços que constituem a nossa sociedade. Este brutal acontecimento chama a atenção para a violência que acomete as mulheres todos os dias. O estupro, uma das expressões da violência de gênero, não é uma prática recente no nosso país, pelo contrário, está presente desde a chegada das primeiras naus ao Brasil. Nem recente tampouco fortuita. De acordo com o 9º Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, durante o ano de 2014, a cada 11 minutos uma mulher foi vítima de estupro, totalizando 47,6 mil[1] estupros no referido ano. Assim como o homicídio de 23 mil jovens negros por ano não é algo natural, o expressivo número de mulheres vítimas de estupro também não. A construção social do macho, a transformação da mulher em objeto (e pior, objeto privado do homem), a imposição masculina de como a mulher deve se comportar, e ótica moralizante e punitiva das diferenças são algumas das variáveis que contribuem para este número tão elevado.
Que neste momento, há cerca de um mês do caso que abalou o país, não o esqueçamos e ressignifiquemos nossa indignação e revolta em força para alimentar nossa luta pela construção de uma sociedade onde as mulheres não mais sejam submetidas aos imperativos masculinos. E quando falo em submissão não estou me referindo apenas as formas às formas mais visíveis – como por exemplo a antiga porém presente cena da mulher relegada à todas as tarefas domésticas, mesmo quando também trabalha fora-, mas me refiro a todos os modos de dominação, desde o que foi supracitado, até os invisibilizados e naturalizados em nossa sociedade, como a ditadura do corpo perfeito, a violência simbólica de todos os dias, e o ciúme abusivo que se confunde com amor.
O ser humano é deveras multifacetado para que lhe seja imposto padrões de comportamento. Portanto, lugar de mulher é onde ela quiser, vestida do modo como ela quiser. Cabe a nós, sermos mais chatos e menos bobos, atuando incansavelmente no combate à piadas, pensamentos e ações que reduzam a condição feminina. Porque o estupro coletivo que recentemente chocou o país, e tantos outros que ocorrem diariamente, são legitimados por piadas e pensamentos machistas e misóginos.
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[1] Devemos considerar as limitações deste número, visto que uma parcela substancial das vítimas de estupro não registra a denúncia. Sendo, portanto, o número real de mulheres vítimas de estupro no ano de 2014 maior do que 47,6 mil.