O guitarrista passou a semana ensaiando, e as semanas antes dessa semana estudando as músicas que precisa tocar. Também passou anos antes dessas semanas estudando música, aprendendo notas, tentando ficar cada dia melhor. O bar chama pra tocar: o cachê é ruim, o bar enche, o bar bomba, o dono do bar ganha muito dinheiro numa só noite, o pagamento é pouco, mas no final tem uma janta!, e eles ainda divulgam o trabalho do músico!!!
Agora sim.
Quando decidiu ser artista decidiu ser otário. Decidiu se contentar com pouco, viver com pouco, viver com nada. Decidiu não ser pago por nada, que é pra-divulgar-o-próprio-trabalho. E passar a vida muito mal, estressado, fodido mesmo, que é como muitos ficam a vida inteira.
Se o poeta tá no começo da carreira, chama ele aqui pra dar quinze palestras, escrever treze crônicas, quatro roteiros, revisar nossos textos, aparecer, dar as caras, ser alvo de fotografia. Não precisa pagar. Não precisa ter dinheiro no meio. Só precisa isso mesmo: divulgar o trabalho dele. Que ele vem.
Fico pensando se quando se chama um artista prometendo divulgar o seu trabalho e ele acredita que isso é pagamento, se também existe a possibilidade de haver um olheiro experiente garimpando artistas incríveis, mundo afora, artistas que, depois desse dia, serão milionários. Reconhecidos. Trabalharão em troca de dinheiro – um luxo.
Quando você está no começo, é preciso “se contentar” com essa ideia: trabalhar em troca de divulgação. Que, pra mim, é a mesma frase de “trabalhar de graça”, “trabalhar por nada”, “pagar para trabalhar”, “fazer do carimbo de otário uma tatuagem no meio da testa”. Não interessa se você está-só-começando. Interessa que querem explorar uma mão-de-obra que, se te chamam, é porque você tem e eles não.
No começo, no meio, no fim da carreira, o artista sempre precisa de divulgação. Óbvio. Mas isso não é moeda. Não deveria ser. Com divulgação do seu nome não dá pra pagar o plano de saúde, nem comprar uma caixa de ovos na promoção do Rede Mais. Não dá pra pagar o celular, a conta de luz, e, menos ainda: investir em si, acreditar que seu trabalho vale a pena, é bom, tem quem goste, tem quem compre. “Meu trabalho não é tão bom assim, estou no começo, vou lá me divulgar. Que é pra um dia eu ficar bom de verdade”. Não vai ficar. Vai atingir um ponto (bem mediano) e ficar por lá pra sempre. Sempre divulgado, cheio de likes, com sobrenome em jornal. E o cheque especial gritando.
Há coisas que se faz por amor, sim, e não só uma, mas repetidas vezes. Há pessoas e situações nobres para as quais você vende seu trabalho gratuitamente: não precisa nem da divulgação, moeda-dos-grandes-empresários. Alguns trabalhos gratuitos serão sempre feitos, espontaneamente, por todo e qualquer artista que valorize, de verdade, sua arte. Alguns. Não todos. Não todos do início da carreira. Não todos da vida inteira.
Enquanto penso nisso, desisto de escrever, procrastino a ideia, a leitura, a escrita, as leituras que me fazem escrever e produzir e criar – um tempo danado, porque o tempo da escrita nunca é só o tempo da escrita, são horas infinitas e quase sempre insuficientes que vêm antes. Enquanto penso nisso, adio muito do que gosto de fazer e do que agora já faço até para cumprir prazos e obrigações; não vejo tanto sentido mais, não sei se há. Também sinto raiva, sinto nojo de prêmio literário que não premia de verdade, sinto indignação por ver músico ralando pra nada (cerveja e janta grátis). E penso que melhor mesmo deixar isso prum depois, prum lugar nenhum, tempo nenhum, enquanto estudo pra um concurso público, fico numa biblioteca, e vou batalhar pra ser normal, ordinariamente normal. É quando meus pais pensam: finalmente, ela ficou adulta. Parou de sonhar.