Por Diego José Fernandes Freire e Maiara Juliana Gonçalves da Silva (Historiadores e professores de história)
Um espectro ronda as salas de aula.
Na última quarta-feira, no estado de Alagoas, foi decidido na Assembleia Legislativa, por 18 votos a 8, que os professores das escolas do mencionado estado deverão se manter neutros no que diz respeito aos comentários políticos e ideológicos, do contrário poderão ser demitidos. Na ocasião o deputado estadual Ricardo Nezinho (PMDB-AL), autor do projeto “Escola Livre”, acredita no êxito do projeto afirmando que o mesmo “vai em busca do bom professor, que é 99% da rede”.
O caso ocorrido no estado de Alagoas está longe de ser um fato isolado. No mesmo dia, uma palestra intitulada “Feminismo – para quê? A história da luta do movimento feminista e a história da opressão contra as mulheres” marcada para ser realizada no dia 28 de abril, às 14 horas, no Colégio Salesiano – Santa Rosa (Niterói-RJ) foi alvo de uma campanha nas redes sociais protagonizada pela página “Encontrando a Alegria”. Nas redes sociais, a campanha fazia apelo aos pais pedindo que “ligassem para a instituição, de tradição católica, solicitando o cancelamento da doutrinação” e que “resistissem à lavagem cerebral esquerdista”. (FOTO 1)
O estado do Rio Grande do Norte não está isento de iniciativas semelhantes às narradas acima. Desde o ano passado, está em trâmite o Projeto de Lei nº1411, de autoria do deputado federal Rogério Marinho (PSDB-RN). O referido projeto visa criminalizar o que chama de “assédio ideológico no ensino do país”. O autor do PL nº1411/2015 defende que “expor o aluno a assédio ideológico condicionando-o a adotar determinado posicionamento político, partidário, ideológico ou constranger o aluno por adotar posicionamento diverso do seu, independente de quem seja o agente” deve ter como punição a detenção de três (3) meses a um (1) ano e multa.
Os fatos acima mostram que os discursos sobre processos de doutrinação tem sido uma constância nos últimos dias em nosso país. Em especial, os docentes das áreas de humanas – história, sociologia, filosofia e geografia – tem sido apontados como porta-vozes de uma “ideologia esquerdista” ou “comunista” entre os seus públicos de alunos do Ensino Fundamental e do Ensino Médio – ou, em algumas vezes, professores de graduação. Temos acompanhado o surgimento de ONG’s como, por exemplo, o “Escola Sem Partido”, e de projetos que se comprometem em “limpar a ideologização” das escolas.
Os eventos expostos acima parecem acompanhar a intensa onda de conservadorismo que visa restaurar as mordaças da censura, do silenciamento aos professores – prática comum nos tempos ditatoriais – em pleno ano de 2016. No dia 20 de abril de 2016, uma professora de História do colégio Marista, na cidade do Natal, foi acusada de “doutrinação ideológica” após ter discutido a questão do impeachment da presidente Dilma Rousseff em sala de aula. De acordo com o juiz Henrique Baltazar Vilar dos Santos, titular da vara de Execuções Penais, que divulgou a sua opinião nas redes sociais, compartilhando da opinião de alguns pais que procuraram o colégio após o ocorrido, a docente em questão estaria “usando a sala de aula para destilar ideologia e mentira aos alunos, tratando-se de um embuste ideológico”. Concomitantemente, um conhecido jornal da capital potiguar, publicou em suas páginas duas notas, intituladas “Doutrinação” e “Recusada”, fazendo menção ao fato de que “professores contrários à decisão de aprovação pela abertura do processo de impeachment da presidente Dilma usaram da sua voz de persuasão para criticar parlamentares e elogiar Dilma e PT”. (FOTO 2)
Sabendo que a função da escola é objetivar um ensino democrático, proporcionando a capacidade de ensinar à população a ler, a escrever, a construir seu conhecimento, a desenvolver uma autonomia intelectual, em suma, ao pensar livre, isto, por si só, não seria já um ato político? Então, como se despolitiza a escola, se ela é fruto de iniciativas, de ações e de atos interessados? Todo esse movimento de “despolitização da escola”, de “combate à doutrinação na escola” parece um tanto parcial, a despeito do seu falatório pretensamente imparcial. Não só parcial, como também partidário, na medida em que intenta que uma ideologia específica – a conservadora, cristã e liberal – grasse livremente no espaço escolar. Em contrapartida, proíbe o discurso dos direitos humanos – estes válidos só para “humanos direitos” –, a fala dos movimentos sociais, a denúncia da opressão, as formas de dominação e a gritante desigualdade social. Assim, almeja-se a despolitização de um discurso específico, a fim de que uma determinada visão de mundo circule sem empecilhos.
Os discursos que se autoproclamam em combate às ditas “doutrinações”, antes de tudo, são inconstitucionais. Ferem, gravemente, o artigo nº 206 da Constituição Federal do Brasil, que versa sobre a liberdade de ensino e de aprendizagem, garantindo “II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” e “III – o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas” (CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988). Os gritos inquisidores que acusam os docentes de embuste ideológico golpeiam também a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (1996). Questionamos: como cumprir a LDB (1996), que estabelece, entre outras coisas, o comprometimento em “preparar o educando para o trabalho e a cidadania, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico”, sem poder emitir uma opinião crítica, sem se posicionar e exigir do alunado um posicionamento?
Os ataques que inflamam um verdadeiro retrocesso em nosso país, finalmente, laceram a História enquanto ciência, fazendo um coro que ataca todo um revisionismo das teorias da História e das práticas pedagógicas que dizem respeito à disciplina. A velha historiografia política tradicional, o ensino preocupado em buscar as origens, a memorização dos grandes acontecimentos e dos grandes personagens, a mera exposição dos fatos, deram lugar ao ensino de História que busca do aluno a reflexão sobre si e sobre o mundo que o cerca, bem como a sua inserção e participação ativa e crítica no mundo social e cultural. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), documento do Ministério da Educação elaborado em 1997 que visava modernizar a Educação Básica, reforça bem essa proposta crítico-reflexiva para o ensino de História. Desse modo, as iniciativas que visam silenciar os professores, evitando que estes doutrinem seus alunos, mostram-se como um verdadeiro retrocesso no âmbito do ensino de História, uma volta a uma pedagogia positivista, factualista e conteudista. Será esse ensino que o ENEM cobrará em suas provas?
Como ensinar nazismo, fascismo, Ditadura militar, capitalismo, iluminismo, comunismo, Guerras mundiais, sem orientar aos nossos alunos a olharem a sua própria realidade cotidiana e a questionar essa realidade a fim de construírem uma consciência histórica? As operações de questionamento, de críticas, de reflexões são essenciais para que o aluno (re) construa conceitos, noções e impressões sobre o conhecimento histórico. Como utilizar da neutralidade ensinando História, uma disciplina em que os próprios discursos, construídos ao longo dos tempos, nos mostram que a própria crença na neutralidade é nula? É impossível que um professor não revele as suas preferências pessoais, políticas, religiosas. O simples ato de escolher qual conteúdo ministrar, em meio à pluralidade dos próprios livros didáticos, já é uma maneira de assumir a parcialidade.
Calar ou restringir a fala do professor não é de modo algum um ato gratuito, feito em nome da Ciência, da Verdade, da Imparcialidade. Do silêncio dos professores, da omissão dos docentes em sala de aula, não brotará nenhuma disciplina expurgada de interesses, mas sim uma série de conteúdos vazios, sem sentidos, incapazes de tornarem os alunos sujeitos reflexivos. Na verdade, por trás dessas tentativas de silenciamento do professor, há um pretenso cuidado com o aluno, visto como um ser puro, incorruptível, de modo que o professor seria o demônio que tentaria este ser quase angelical, o discente. O medo da fala transgressora, da voz questionadora do professor, profissional que leva seu aluno a pensar, está na base dos que tentam calar os vários docentes em suas salas de aulas. Sendo assim, pode o professor falar? Se este profissional de ensino não pode mais falar na sala de aula, onde mais ele poderá falar? Se os alunos não podem mais ouvir seus professores, quem mais irá ouvi-los? Um fantasma ronda as salas de aula. O fantasma do autoritarismo e da censura.