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O que é golpe, afinal?

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Por Raoni Sousa

Em tempos de discordâncias sobre que palavra usar, uma consulta a dicionários não faz mal, mesmo que no fundo a escolha dependa do posicionamento político de cada um. Pois bem: que tal verificar em dicionários o que é golpe?

Entre várias definições, podemos encontrar lá no Aurélio: “Manobra desonesta, com o fim de enganar, prejudicar, roubar outrem”; e, no Houaiss: “ação ou atitude desonesta, desleal ou indigna”.

Há quem persista argumentando com base em tipificações legais o que seria impeachment e o que (por não ser legalmente impeachment) seria golpe. Mas há acontecimentos inequívocos que deixam claro, inclusive para os mais ou menos leigos das leis, que há um golpe em curso. É só observar os passos de Eduardo Cunha.

Já era golpe quando Cunha decidiu, no dia 2 de dezembro, aceitar o pedido de abertura de processo de impeachment em retaliação aos votos de parlamentares do PT no Conselho de Ética por sua cassação. Ele não estava agindo no cumprimento do seu dever como representante do povo, a quem deve responder, mas em interesse próprio. Golpe.

Já era golpe quando Cunha, no dia 5 de janeiro, arquivou pedido de impeachment de Michel Temer, fundamentado nas mesmas razões do pedido de impeachment de Dilma que ele havia aceitado. Ora, se Temer praticou os mesmos atos de Dilma que estão sendo questionados, deve ser tratado da mesma maneira que Dilma. Cunha, correligionário de Temer, não agiu em coerência com o princípio da isonomia que deve reger as ações do seu cargo, mas sim conforme interesses do seu partido. Golpe.

(Sem falar em presidentes anteriores e mais de uma quinzena de governadores atuais de variados partidos que praticaram pedaladas, olha só.)

eduardo_cunha_pmdb49_golpistaContinuou sendo golpe quando Cunha, mesmo após determinação do ministro do STF Marco Aurélio de que instalasse a comissão de análise do pedido de impeachment de Temer, além de dar chilique via recurso, fez corpo mole diante das recusas de DEM e PMDB em indicarem membros para a comissão. O disparate dessa omissão fica claro se imaginarmos o que ele faria se PT e PCdoB se recusassem a indicar membros para a comissão de análise do pedido de impeachment de Dilma.

Não bastasse isso, Cunha argumentou, para o arquivamento do pedido contra Temer, que este editou decretos para créditos suplementares antes da revisão de meta fiscal de julho de 2015, ao contrário de Dilma, que o fez após a revisão. Mas oculta o fato de que, naquele mesmo 2 de dezembro em que admitiu o pedido de impeachment de Dilma, estava agendada a votação de uma nova revisão de metas — que o Congresso, poucas horas depois, aprovou. Em suma: golpe.

É muito óbvia a desonestidade, e muito claro que o pau que bate em Chico não está batendo em Francisco. É golpe. Soa bonito (e é, afinal de contas), para a consciência, clamar pela punição de todos os corruptos, mas é crucial analisar as condições objetivas e avaliar a estratégia de realização dessa punição. Uma declaração muito significativa para essa análise partiu de Carlos Fernando dos Santos Lima, procurador da República integrante da força-tarefa da Lava Jato, que afirmou recentemente: “Boa parte da independência atual do Ministério Público, da capacidade técnica da Polícia Federal decorre de uma não intervenção do poder político, fato que tem que ser reconhecido. Os governos anteriores realmente mantinham o controle das instituições, mas esperamos que isso esteja superado”. É curioso que a presidenta sob ameaça de impedimento seja justamente a que menos intervém nas condições de ação do Ministério Público e da Polícia Federal, não é?

Como num jogo de xadrez, cada peça, com posições e alcances diferentes, precisa ser mirada num justo momento estratégico, sob risco de, não o fazendo, sermos surpreendidos por um contra-ataque que mine nossas possibilidades de jogo. Resta saber de onde tiram esperança aqueles que apostam suas fichas na queda de Dilma como um primeiro passo para a queda de outras grandes figuras, incluindo Cunha, quando a queda da presidenta (sem queda análoga dos que fizeram o mesmo que ela, nem dos que fizeram muito pior do que ela) implicaria precisamente um ganho de poder para ele, seus correligionários e aliados manipularem mais ainda o andamento dos processos que os ameaçam.