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Baldur’s Gate e a agenda política conservadora

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Baldur’s Gate, tradicional game eletrônico de fantasia medieval baseado no aclamado RPG Dungeons & Dragons, introduziu rapidamente uma personagem transexual na sua mais recente expansão, “Siege of Dragonspear”. Mizhena é uma personagem não-jogável e, quando questionada sobre seu nome incomum, responde “Eu criei este nome há muitos anos”, e continua “Meu nome de nascença provou-se inadequado.”

Num cenário onde magia coexiste com dragões e goblins uma adequação de genitália ou performance de gênero não deveria parecer absurdo, bastaria talvez encontrar o último ingrediente mágico numa masmorra entupida de monstros para completar o ritual de transição. Não foi essa a visão de parte dos gamers, que passaram a criticar o jogo por causa da personagem transexual, acusando-o, dentre outras coisas, de adotar uma “agenda política”.

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O game passou a receber – em protesto – uma série de notas baixas em sites de crítica especializada. As críticas suaves à respeito da personagem se centraram principalmente em dois pontos 1. Que esse tipo de personalidade não se encaixa no cenário e proposta da fantasia medieval, 2. Que há uma “doutrinação ideológica”, uma “agenda política” nos “enfiando goela abaixo” personagens LGBT, mesmo que “não tenham nada a ver” com um gênero ou a narrativa. Tratarei destes dois e, no fim do artigo, daquela que me pareceu uma crítica melhor.

#1 Os gêneros cinematográficos e literários não são estanques nem têm compromisso com lei, rei ou fé. Se até então a fantasia medieval clássica não retratou as transexualidades foi devido a esse gênero ser tradicionalmente escrito por homens cis e heterossexuais, compromissados com seus próprios assuntos e demandas. Embora, certamente, existiram sufocadas pessoas trans na Europa medieval, bem como nos diversos tempos históricos e culturas humanas. Se a fantasia medieval (normalmente Tolkeniana, como Baldur’s Gate) habitualmente não retratou esse tema não foi porque a heterossexualidade e a conformação ao sexo/gênero imposto são naturais e eternos, brilhando únicas no medievo e só recentemente maculados por essa gente esquisita.

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Não existe nenhuma dissonância em se ter a biografia de uma personagem trans num cenário onde os debates antropológicos estão sempre tão em voga: choques culturais e étnico-raciais aos magotes, conflitos políticos interraciais, contendas entre estranhas religiões… Falar de uma personagem transexual num mundo onde deuses e religiões dominam, os sistemas políticos totalitários vicejam e um carnaval de raças não-humanas desfila é perfeitamente plausível e rende bons frutos – George Martin lucrou com coisa parecida. O gênero fantástico e seus subgêneros se ocupa(ra)m demasiado do etnocentrismo, colonialismo, das relações sociais entre diferentes culturas e raças, tanto na fantasia medieval quanto na ficção científica (o robô que se enxerga humano, o reinado ameaçado por um exótico país estrangeiro…). Assim, a personagem Mizhena nada tem de alienígena àquele universo.

#2 Tornou-se comum o uso do termo “ideologia de gênero” para definir a contracultura ou o resultado de pesquisas históricas, sociológicas, antropológicas, filosóficas a respeito da assimetria de poderes entre homens e mulheres e da heterossexualidade obrigatória como um sistema político, dentre outros temas, aglutinados nos chamados “estudos de gênero”. A utilização depreciativa do termo ideologia para definir a materialidade dessas pesquisas (o fato de que as relações de poder entre homens e mulheres, por exemplo, se transformam ao longo da História e das culturas ou de que o feminicídio operando no Brasil não é natural) vem sendo praticada por religiosos e conservadores a fim de – como sempre – ocultar e inverter o real, “como numa câmara clara”.

Ideologia pode ser entendida como uma ideia “inversora” do real, um discurso que descreve a sociedade ou a natureza de ponta-cabeça: aquilo que é criação humana (a igreja de Paulo, por exemplo) passa a ser a criação de Deus, o que é construto histórico (relações de poder entre sexos/gêneros e sexualidades), passa a ser visto como eterno, o que é contingente (a heterossexualidade obrigatória, uma religião qualquer…) é narrada como necessária à existência. Essas ideias medram na religião e no conservadorismo a despeito das pesquisas históricas e arqueológicas denunciando que nenhum arranjo social é necessário, eterno, imutável, divino… coitados.

Dessa forma, “doutrinação ideológica” é exatamente aquilo que as igrejas e outras instituições conservadoras fazem com suas crianças, batizando-as antes mesmo de saberem falar e compreender a crença em que estão sendo afogadas, muito cedo ensinando-as que Deus fez o homem e a mulher, e não que a reprodução das espécies é um mero produto de uma evolução desprovida de sentido ou inteligência “superior”, anunciando o gênero dos sujeitos antes mesmo que eles possam dizer, por si, como se sentem, inventando uma mitologia infernal para condenar tudo que não for heterossexual ou o sexo permitido, mesmo hétero… e uma série de outras doutrinações que as Igrejas cristãs, atuantes principalmente no Ocidente, vêm fazendo desde que ganharam poder suficiente para isso.

Assim, a introdução de personagens LGBT, antes marginalizados, interditos, ocultos pelos autores clássicos, nas histórias recentes nada tem de doutrinação ideológica se não da produção de um outra narrativa que não é aquela da ideologia cristã e conservadora dominante. O que veio goela abaixo de tantos não-heterossexuais e sujeitos trans foi exatamente a ideologia religiosa cristã e conservadora, com sua hegemonia de personagens cis.
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A heterossexualidade obrigatória, a compulsoriedade em seguir o gênero de acordo com sua genitália, como entendida socialmente, o apagamento de todo o Outro não-hétero e não-cis/binário é que constituiu uma importante agenda política dos cristianismos e conservadorismos desde que se tornaram religião e ideologia poderosas a ponto de perseguir e fazer valer sua fé pela força ou pelo apagamento, pela exclusão da História e das estórias. O controle dos corpos e das sexualidades, dos fluidos corporais e dos prazeres, das performances e indumentárias, das psicologias, a criação de uma maquinaria de controle e conhecimento sobre como se transa e se goza, onde se coloca as mãos e as bocas, estas sim, têm sido uma poderosa agenda ideológica cristã-conservadora só minada pelo estabelecimento de direitos alheios à religião, muito recentemente. O que as ciências fazem não é a ideologia, essa ideia inversora, mas justamente desinverter ou desencantar o sortilégio que as ideologias religiosas e conservadoras, por tanto tempo, vêm praticando para ganhar dinheiro e poder, e dominar.

A heterossexualidade e a cisgeneridade obrigatória, por meio da remoção e apagamento de tudo que não for elas mesmas dos romances, novelas, contos, games e demais narrativas quer nos fazer crer que não se constituem em agendas políticas, que são totais, gerais, naturais, que o político é o alheio a essas instituições, o diferente. Quando acusam personagens LGBT ou roteiristas de agirem em nome de uma “agenda política” esquecem das estratégias adotadas pela heterossexualidade compulsória: excluindo LGBT, matando-os, privando-os de liberdade, de sexualidade, de afetos, de serem personagens em estórias… enfim, da existência. Não existe nada de natural em só haver héteros ou pessoas cisgêneros em contos, filmes ou games, se a fantasia medieval clássica assim o é trata-se do produto de uma agenda política à míngua.

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Finalmente, as críticas mais interessantes parecem ter vindo de pessoas trans, que acusaram o game – por causa da personagem ser não-jogável e ter poucas falas – de usar o tema como recurso para criar polêmica e vender mais. É possível que isso seja verdade. Uma das roteiristas respondeu às críticas da seguinte forma: “Eu não gosto de escrever apenas sobre pessoas hétero/brancas/cis o tempo todo. Não é para refletir o mundo real, onde adota-se como normal o padrão hétero/branco/cis e todas as demais opções são interpretadas como ‘o outro’. Esse padrão é chato.”

Mesmo que nenhum escritor seja obrigado a nada, podemos no entanto questionar a parca aparição da personagem e a razão dela não ser mais importante para a narrativa do game. Talvez seja o caso de, numa futura edição, haver mais o que falar e jogar a seu respeito, para delírio de quem quer crer que o mundo se faz só de cisgêneros.

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