O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em parceria com Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgou os mais recentes dados sobre a violência no país. Diante de uma conjuntura política tão conturbada e da predileção midiática por “escândalos” e crises, o Atlas da violência 2016 não recebeu a atenção pública merecida. A omissão só não é mais grave do que os dados. Os números obtidos revelam um novo patamar macabro em termos de letalidade: em 2014, quase 60 mil pessoas foram assassinadas no Brasil. Em outras palavras, é como se em apenas um ano o equivalente populacional de diversas cidades médias brasileiras fosse exterminado.
No entanto, engana-se quem acha que a violência que assola a sociedade brasileira é uma fatalidade a qual todos estão sujeitos de padecer em algum momento ou lugar. Ela não incide da mesma maneira sobre todas as classes de pessoas. Ao invés de seguir padrões aleatórios e generalizados, os dados mostram, mais uma vez, fortes componentes de classe, gênero, raça, faixa etária e escolaridade na distribuição da violência letal. Esta incide principalmente sobre os jovens pobres, negros, do sexo masculino e com menos de 8 anos de escolaridade.
Mais da metade dos homicídios no Brasil em 2014 correspondem a jovens entre 15 e 29 anos. Com exceção de Roraima e Paraná, o assassinato de negros no país é proporcionalmente maior em todos os estados da federação. Se levarmos em consideração apenas a população negra, temos uma taxa de homicídio de 37,5 por 100 mil habitantes ao passo que a taxa de homicídios de não-negros é de 15,6 homicídios por 100 mil habitantes. Ao tomarmos os dados numa série temporal, entre 2004 e 2014, temos outra relevante e preocupante informação sobre o viés e desigualdade racial dos assassinatos no país: enquanto o homicídio de negros subiu 18,2%, os índices de assassinatos de não-negros e não-pardos diminuíram 14,6% nesse mesmo período.
Em Alagoas, por exemplo, para cada não-negro assassinado houve, em média, 10,6 pessoas negras vítimas de homicídio. O Rio Grande do Norte, que apresenta a maior escalada nas taxas de homicídios entre 2004 e 2014, assustadores 308,1%, é também o estado onde o índice de vitimização de negros mais cresceu, 388,8%. Nesses estados, ocorre um verdadeiro extermínio social da juventude negra e pobre diante do qual as autoridades públicas e os meios de comunicação silenciam e permanecem numa passividade crônica de inacreditável insensibilidade e irresponsabilidade com suas prerrogativas e funções públicas. Entre os mais violentos do país, o RN saiu de 342 homicídios em 2004 ou 11,3 mortes por 100 mil habitantes para 1576 em 2014 ou 46,2 mortes por 100 mil habitantes, segundo o Atlas da Violência, e isso com toda a subnotificação que marcou o estado potiguar nos últimos anos.
Por último, a escolaridade é outro fator importante que o estudo do IPEA nos mostra quanto se trata de pensar as chances de ser vítima de violência letal. A educação é “um verdadeiro escudo contra os homicídios”. Indivíduos com até 7 anos de estudo possuem 15,9 vezes mais chances de serem vitimados por homicídio do que aqueles que ingressaram no ensino superior.
Se o sentimento de medo e insegurança diante do crime violento é verdadeiro em sua generalidade social, a ideia de um risco igual e homogêneo de ser assassinado no Brasil, por outro lado, é apenas aparente. Diversos estudos sociológicos, e o mais recente Atlas da Violência vem corroborar ainda mais a tese, mostram que existem categorias de pessoas explicitamente mais vulneráveis à violência em seu cotidiano. Como mostrado nos parágrafos anteriores, são os jovens, negros, pobres e com menos inclusão e tempo escolar do sexo masculino que pagam com a vida as contradições sistêmicas e históricas da sociedade brasileira.
Nesse sentido, isso nos permite chegar a outra importante conclusão sociológica sobre a violência homicida, qual seja: a correlação entre violência letal e desigualdade social. Não se trata da anônima tese do senso comum que tenta equivaler de maneira direta pobreza, delinquência e violência. Trata-se de perceber, pelo perfil das vítimas e geografia dos homicídios, que há disparidades significativas no alcance social e os efeitos da violência sobre a sociedade, e que sua distribuição desigual segue a lógica da desigualdade das condições e oportunidades sociais de vida dos indivíduos.
Nas cidades grandes e médias brasileiras, existem verdadeiros bolsões de subcidadania e enclaves de cidadania e supercidadania em que o atendimento de fatores objetivos e subjetivos relativamente asseguradores da integridade corporal e protetores contra a violência são fortemente desiguais. Contextos urbanos caracterizados pela precarização da vida coletiva, isto é, carência de acesso e qualidade de serviços públicos, de espaços de lazer, de suporte social e institucional para resolução de conflitos, postos de trabalho degradados e limitados, estigmatização territorial alimentam condições sociais diretas e indiretas favoráveis para sociabilidade e práticas violentas, em especial o homicídio. Em contraste com esses contextos periféricos de alta concentração de anomia social, temos, por outro, verdadeiros enclaves de classe média na cidade em que vigora não apenas a concentração de riqueza material mas a concentração de recursos sociais e condições de acesso à serviços e bens escassos (escola, saúde, lazer, justiça, segurança) que lhes permitem maior proteção e efetividade contra a violência em geral e os homicídios em particular.
Essas diferenças sociais produzem, inegavelmente, diferenças expressivas em termos de vulnerabilidade à violência. O direito à vida e à integridade física não são garantias equânimes para todas as pessoas numa sociedade desigual como a brasileira.
O atual patamar de homicídios alcançado pelo Brasil não somente significa o maior número já registrado em nossa história, como também nos coloca na infame condição de ser, atualmente, responsável por mais de 10% dos homicídios notificados no mundo. Um dado como esse não pode ser, de modo algum, ignorado e muito menos naturalizado. Urge tomar a violência letal no país como uma das prioridades da agenda de políticas públicas. E, para o seu devido combate, faz necessário mais pesquisas sobre o entendimento acerca das condições sociais da produção e crescimento da violência e medidas mais profundas e perenes de combate à desigualdade social no país.
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Para maiores detalhes sobre o Atlas da Violência 2016, que traz, também, importantes informações sobre a letalidade policial, distribuição regional dos homicídios e violência de gênero, acesse a Nota Técnica do IPEA: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/160322_nt_17_atlas_da_violencia_2016_finalizado.pdf