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A Bruxa – o filme certo para o público errado

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Há algo muito errado com a maioria dos espectadores nos cinemas brasileiros. Eles não percebem que, assim como os livros, as imagens devem também ser lidas e não apenas observadas em busca de efeitos emocionais imediatos, sejam eles os deslumbramentos de efeitos visuais de última geração ou simples sustos. Nos filmes de terror há muito disso. Um filme sem sustos ou imagens sem muito sangue e pedaços humanos são geralmente desprezados pelo grande público. Este mesmo público acharia chato um filme como o Bebê de Rosemary. Eles não percebem a genialidade de tal filme, onde a atmosfera é muito mais importante do que a simples produção de sustos, um filme que pode deixar marcas no seu inconsciente e fazer você sair do cinema pensando nele por toda a vida (até hoje tem gente que jura ter visto o tal bebê demoníaco, quando na verdade ele nunca aparece).  Em tempos de smartphone, A Bruxa mostra o quanto esse tipo de público é inconveniente e o quanto ele foi “educado” pelos blockbusters em geral para não saberem apreciar um filme com a proposta como A Bruxa.

thewitch_online_teaser_01_web_largeRobert Eggers, roteirista e diretor estreante do filme A Bruxa, teve muita dificuldade em conseguir financiamento para seu filme para que ele fosse filmado de acordo com sua proposta artística. Precisou de uma produtora brasileira, a RT Features (responsável por filmes como Tim Maia e O Cheiro do Ralo), apostar no filme para que ele fosse realizado sem a influência pasteurizante dos produtores hollywoodianos. Com isto, inspirado em relatos do século XVII e no folclore da Nova Inglaterra, Robert Eggers roteirizou e dirigiu um filme perfeito em sua reprodução de época, na sua fotografia, na sonoplastia e na sua excelente música, esta inserida economicamente e no momento certo. Afinal, com um bom diretor, ele sabe que o silêncio é tão ou mais importante que qualquer efeito sonoro ou musical como acessório indispensável da narrativa.

A família da adolescente Thomasin (Anya Taylor-Joy) abandona a cidade de colonos protestantes na Nova Inglaterra, por um motivo nunca explicado aos espectadores. Eles constroem sua casa e cuidam dos seus animais e da colheita numa clareira cercada por uma opressora floresta. Logo no inicio do filme a família sofre o trauma do desaparecimento do filho mais novo. Tal desaparecimento dá início a acusações de todo tipo, principalmente contra Thomasin. Acusações que partem principalmente da mãe dela. As culpas sexuais/religiosas da família atingem principalmente Thomasin e Caleb (Harvey Scrimshaw). A primeira é direta ou indiretamente acusada de todos os males que acontecem na família (da mesma forma que a mulher foi acusada pela igreja cristã por todos os males no mundo); o segundo se vê atormentado por não saber lidar com o despertar do seu interesse sexual diante de tanta condenação imposta pelo discurso religioso do pai. Tudo isto numa ambiente extremamente claustrofóbico onde a presença do mal deixa toda a natureza impregnada, da floresta aos animais. Entretanto, apesar de toda abordagem típica de um bom filme de terror, não haveria de se fazer muito esforço intelectual para perceber que o mal está impregnado principalmente na religião como fonte de poder dos homens contra as mulheres e contra os outros homens, no velho discurso religioso que condena toda a natureza ao inferno da culpa. Ao contrário de alguns filmes de terror dos anos 70, a Igreja aqui não salva ninguém, pois ela é também o próprio mal.

 

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A Bruxa pode ter diversas leituras, da psicologia à antropologia, da metafísica ao feminismo. Faz tempo que o cinema de terror não oferece um filme que provoque tantas leituras e discussões. Vemos de cara a discussão sexual pautada por uma repressão religiosa. O lugar da mulher numa sociedade cristã fundamentalista, onde a sexualidade feminina é considerada a origem de todo o mal; até mesmo sua libertação das amarras patriarcais que impedem sua livre expressão sexual. Enfim, como eu disse, o filme permite diversas discussões e interpretações, mas sem deixar de ser um ótimo exemplo de um excelente filme de horror.

Mas tais discussões filosóficas é coisa que os produtores hollywoodianos não querem, pois o público em geral está acostumado com o que Hollywood lhes ensinou. E isto fica claro ao assistir A Bruxa num cinema lotado aqui em Natal/RN. Um público acostumado a alívios cômicos. Um público que rir, em boa parte da projeção, de cenas nada engraçadas. O filme trata de um drama terrível, de uma família que se vê aos poucos sendo despedaçada por ela mesma e por um mal que ela não entende, presa nas correntes castradoras da religião cristã daquela época, causando todo tipo de transtorno psicológico. O próprio pai ensinando ao filho que existem pessoas já previamente condenadas ao inferno, que ele ou o próprio irmão recém-nascido já poderiam estar condenados ao sofrimento eterno. Tudo isto falado a um jovem que está passando pelo despertar da sua sexualidade, tratado aqui, como em muitas igrejas evangélicas de hoje em dia, como pecado e motivo de tortuosa culpa.

 

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Há também no filme uma forte simbologia. Quem tiver lido um pouco sobre paganismo, mitologia e magia entenderá as diversas referências que o filme entrega. De Baphomet ao sabá, até a origem do uso da vassoura das bruxas do imaginário popular.

O filme causa medo não pelos motivos que o grande público espera, mas talvez pelos motivos reais. Os risinhos nervosos que ouvi durante a projeção podem comprovar isso. O filme incomoda, talvez, por apontar sutilmente nas repressões sexuais de cada um. Causa medo também pela presença do mal que permeia toda a narrativa, assim como todos os objetos mostrados nele (a casa, a floresta, os animais, uma simples brincadeira infantil com um bode…). Embora o grande público não tenha maturidade para ir além do “satanismo” da narrativa, o medo dessa aura soturna pode ser um dos responsáveis por fazer um grupo de amigos não parar de falar durante a projeção ou de outro não parar de digitar no celular… Talvez, em algum nível, nas profundezas do seu inconsciente reprimido, eles tenham entendido muito bem A Bruxa, e isto foi o que realmente lhes incomodou no filme. Não a falta de sustos, não o ritmo narrativo mais lento do drama familiar, mas o medo de ter se deparado, ao menos um pouco, com seus medos mais íntimos.

Ps: Vi, em algumas críticas, um certo descontentamento com o desfecho do filme. Alguns desaprovam o final por achar que ele quebra o clima e a proposta inicial do filme. Eu acho justamente o contrário. O final é a catarse necessária tanto para a protagonista quanto para o público. Mas não vou comentar aqui para não entregar um grande “spoiler”. Sinta ou entenda o final como você quiser.

 

Título original: The Witch
Ano:2015
País: EUA, UK, CANADÁ, BRASIL
Direção e roteiro:Robert Eggers