A solidão barulhenta das paradas de ônibus, espera melancólica. Meu olhar se estende pela avenida, assim posso ver com certa antecedência o ônibus atrasado. Essa cena me transporta para o passado, na espera, sentado, como sempre atrasado, para a aula, o colégio, que inferno. Lá vem, logo dois da mesma linha, isso justifica a demora. O primeiro se aproxima, estendo a mão.
Passou.
O tempo voltou, uma década ou mais, quero voltar a ser aquele pinta que senta lá atrás.
Escolho uma pedra, bom se precaver, vai que o próximo não pare.
Parou.
A porta abre enquanto chia, esse cobrador nunca me olha, alimenta um ódio silencioso contra mim, de anos, de vidas passadas. Se pudesse arrancava meu topete, rasgava minha roupa, me segurava pela corrente, arrancaria cada dente. Mas não pode. De certa forma isso me conforta, porque eu também sei o que é ódio silencioso. Não contra um, mas contra todos.
Meu lugar está desocupado, logo atrás do assento mais elevado, próximo à porta traseira. Ainda constam minhas marcas na lousa branca a minha frente. Esqueci a caneta, sem terrorismo poético hoje. As traseiras dos bancos, outdoor marginal. O cobrador já me olha, sabe que sou eu o poeta do ônibus.
Encosto a cabeça no vidro, assisto a cidade na tela: homens, muitos pela rua, caminham, correm, quase nunca param, me olham indiferentes, como um ator à sua plateia
Torcida? Todos apreensivos, niilistas? Passos ritmados, mãos, tchaus, despedidas. Não! Não quero ir, tambores, passos fúnebres, hospital lotado. Melancolia de hospital, olhar feio, triste, como ela sofreu. Doeu?
Túnel, carros, luzes, prédio, vidraça, tudo muito urbano, feio. Carros, movimentando, muitos deles, pedestres apreensivos esperando sua vez de passar, humanos versus carros, homem versus máquina, disputando uma vaga, uma bela jovem vai atravessar, agora o carro para, todos vem atrás, rebanhos.
Mulher idosa, menino atrevido! Me aponta e levanta a cabeça hostilmente, tudo para impressionar seus amigos, bela moça, franziu o cenho, seria por causa do sol?
Velho corre, ele para, me olha, parece um animal. Ônibus parado, todos se espremem para entrar, não cabem mais aqui, ônibus de ferrugem, se equilibram nas rodas, trabalhadores dançam, no swing do ônibus, enquanto a janela vibra, ruídos em todas as peças, chocalho de janela, boate tristonha essa, mulher alisando o cabelo do marido, amor maternal no casamento, mendigo tranquilo, parece o mais tranquilo deles. Em paz, com seu grande saco, sua colheita do dia. Todos apressados, passam na faixa de pedestre.
Mendigo ri
Carinha vendendo a sacolinha de amendoim, pega o troco na pochete, homens puxando carroça, homens que trabalham, homens que andam na rua, por entre os carros, uns pelos outros, as rodas de uns pelos pés dos outros.
Muitos no lixão pegam sobras da fartura de poucos. Mar de sacos de lixos, cada saco uma surpresa, um mundo. Cada saco um universo anônimo. É aqui, aqui mesmo, não vou descer, vou ficar. Esse ônibus, esse lugar, esse é meu ponto, aqui deveria estar.
Na rua seguinte, vários no bar, conversas fúteis e mórbidas, muitos, um show. Parecem muitos, mas formam um só, se movimentam juntos, como um organismo. O Homem, feito de retalhos de homens, ruas vazias, casas lotadas, a festa, a morte, não pode parar.
Veja um outdoor. Viu? Multidão, que esquisito, um carro forte entre eles, ninguém estranha, não sabem da guerra em que vivem?
O porto, seu moinho, majestoso, cheiro de peixe. Você viu? Um navio, um contêiner, as torres de guindaste, cada contêiner um mundo. Placas, avisos, siglas, bandeiras, cosmopolitismo de porto. Não, não vai para Nova Iorque porque está em chinês, ou japonês, quem vai saber?
Previsão do tempo no rádio de alguém, faz calor? Que previsível, moça, posso abrir essa janela? Nem todos merecem sofrer pelo seu cabelo. Fecha e faz o vidro de espelho. Bem melhor
Pessoas pulando da ponte, se erram a descida se estropiam. Por que pulam? Quanto risco estamos dispostos a aceitar? Urubus, no bus. Olha as pessoas, feira no lixão, necessidade e ganha pão, porque não espantam eles. Urubus são legais, são nossos corvos. Barco, balsa, ferry boat, trem lotado, gente na janela, todos em câmera lenta, me sinto como carniça, multidão de urubus, me rasga como esse assento, me tira a espuma, a carne, não me deixa sair dessa viagem.
O rapaz do nono vagão quer me dizer algo, acho que é: “fecha o zíper”. Pessoas em um fusca, tem um com sono, outro com um velho tênis Adidas, um com caderno. Senhora leva um saco na cabeça, tem cara de sábia, senhoras são sempre sábias, senhoras são um saco. Estudantes estão sempre correndo. Nos muros pichações da guerra urbana, delimitações de fronteiras. Tribos, barreiras. Adote um bando como pai, dizem todas elas. Eu que sou tão sozinho
Coitada da criança, perdida, cadê seu Pai moleque? Tá dentro de mim. Olhe, estão todos de joelhos louvando Deus Pai. Deus Pai que Lutero matou. Se ajoelhe! Vão te bater, garoto foi mais esperto que eu, correu.
Ah lá!
Meninas saindo do colégio, um prédio novo outro velho. Vejo a Torre Eiffel na Ponte de Igapó. Os ferros, os rebites, a ferrugem. Ferrugem dos parques de diversão, estética da modernidade, Belle Époque sertaneja. Modernidade que assedia o sertão, o broto paga para anunciarem na caixa de som, usando codinome secreto, que corteja a cocota. Ela odeia isso, meninos na roda gigante, voam. Industria da magia quando não haviam videogames. Não é só o mendigo, eles também vivem.
Eu que continuo tão criança.
Homens barro, marrons. Casa de João de Barro.
TERRÁqueos
Casas de alvenaria com lataria de taipa, mocambos. Terreno baldio, carros se decompondo. Carrapicho. Mijo. Lixo. Eu queria isso, barraca de lona, a minha seria a melhor, a maior. Todos veriam, decerto falariam: “Se liga ai na barraca do maluco”. Precisamos de um pouco de emoção, também de atenção. Pegaria o melhor do lixo da quinta-feira, pouco antes do caminhão de lixo. A minha barraca ia crescer, algum burocrata ia ver, a polícia derrubar, talvez me bater, mas eu armava em outro lugar, o que eu pensasse eu ia escrever, colocar nas caixas de correio, apertar a cigarra e correr. Tudo ia ser rima. Até morrer em uma chacina.
Ser enterrado, sem ladainha de vigário, assim eu acabo.
Não?
Esse não é o final, o ônibus vai sair do terminal, darei outra volta.
Avião que rabisca nuvens no céu, outro decolando, recolho o trem e nele pouso, que filme se passa em suas janelas? A altura nos deixa platônico. Cidades são sempre geométricas de cima, coluna de prédios, retas, formas, decaedros, perfeitos. A cidade estética. A cidade esférica. Manchando o verde, o cinza, derrama.
Prefiro a sujeira desse ônibus, a cidade acima do meu horizonte, o cheiro dos lugares, a janela frouxa que bate, o chão de alumínio com marcas antiderrapante. Pingos de chiclete mascado, espumas que saltam dos bancos rasgados, cheiro de metal manuseado, diesel queimado, barulho de carro
E o mendigo a sorrir
Para. Sua felicidade me incomoda. Anda… carrega, vamos! Vagabundo, trabalhador burro, leve nas costas nosso projeto. Vá cair não, te chicoteio, fica ai no chão, tem que produzir, se entupir, consumir, morrer drenado. Lá do outro lado, não aqui.
Ladrão.
Eu continuo banal, fedendo a classe média, pequeno burguês. Que pé feio você tem, dedos descompassados, assimétricos. Cascos nas solas, homem velho. Tão novo, macaco sábio. Por que ri? Dirige motorista, olha pra frente.
Gol! Sai da minha consciência torcida chata, torcida organizada, militarismo, uniformes. Onde estou? Acho que é aqui, será que passou? Puxo agora? Na próxima?
Vai descer motorista! Descarrego na lataria
Pá pá pá
Ô, já passou, agora eu desço. Tudo gira, o ônibus passa
Pá pá pá
Para ai mundo, quero descer!
Atravessa a passarela direito, vá para o seu lado direito que vou para o meu, assim andamos mais rápido. Por que nem todos agem racionalmente? E por que deveriam?
Parem de me olhar sua multidão mediana, não sou multidão, não sou vocês, não me chamem, não vou! Sou muito soberbo pra isso, como podem exaltar o povo? O médio? Rebanho, mundano, prefiro o Homem, o alto, o longe. Sou muito estranho pra ser comum.
Nunca andei de trem, ninguém me chamou. Eu não quis. Tem gente que mora na rua, mendigo novamente, está mais sério mendigo?
Por que não tenho raiva de você assim como da multidão?
Mendigo responda!
Mendigo mudo
Mendigo ri
Mendigo em mim?