Lá se vão 26 anos da memorável apresentação de Bowie na Praça da Apoteose (Rio de Janeiro), que fazia parte da tour Sound and Vision, em que o mesmo locupletou a platéia com seu fabuloso repertório e legado construído até aquele momento. E eu (apenas um amedrontado garoto de 13 anos) recebi um ostensivo convite de um amigo para ir a este show, mas recusei por conta dos receios da vida urbana: “vamos voltar de madrugada?”
E hoje carrego um arrependimento de não ter acompanhado o amigo Cristiano (prometia com muita segurança que dormiríamos na casa de sua avó em Bonsucesso). Depois de tanto insistir, ele também foi responsável (meses depois) pelo meu debut no universo alternativo underground. Um show no lendário Circo Voador. Mas isso é uma outra história…
As imagens desta apresentação (disponíveis no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=oDdFVJb39JM) corroboram este arrependimento. Pode-se ver um Bowie suntuoso e majestoso no palco, acompanhado por uma competente banda protagonizada pelo guitarrista Adrian Belew (o mesmo que o acompanha na Stage tour em 1978). Canções que foram causando delírio e reverência no público: Ziggy Stardust, China girl, Sound and vision, Rebel Rebel, etc.
E o comecinho dos anos 1990 ainda era o momento de apreciar a descoberta de coisas boas que eram produzidas em terras tupiniquins fomentadas pela Rádio Fluminense (“A maldita”): Picassos Falsos, Hojerizah, Nau,Violeta de Outono, Smack, Finis Africae, Fellini, Zero e Vzadq Moe. Outra descoberta mais intensa foi a de bandas originárias do pós-punk inglês, declaradamente influenciadas pela arte de Bowie: The Cure, Echo and The Bunnymen, Bauhaus e Joy Division (que em seus primeiros dias tinha o nome de Warszawa: música de Bowie LP Low). Fabulosos vinis!
Fico imaginando quantas vezes Ian Mcculloch ouviu Heroes, o quanto Robert Smith ouviu Star Man, O quanto Peter Murphy ouviu Ziggy Stardust. Estes e mais tantos do New Wave, influenciados pela faceta andrógena, pelo figurino transgressor e ousado de Bowie.
Em meio à impressionante capacidade transgressora e de reinventar-se, Bowie estabeleceu-se em Berlin (Alemanha Ocidental) e nos presenteou com o que apreciamos como Trilogia de Berlim. Neste momento conceitual (muito influenciado por Krafwerk) foram produzidos três impressionantes discos: Low (1977), Heroes (1978: faixa título narra triste história de um casal separado pelo Muro de Berlim) Lodger (1979). Que foram coroados com o registro de uma tour no LP Stage (registro de dois shows na Filadélfia). Bowie contava com a parceria de Brian Eno e Tony Visconti para compor canções de cunho futurista, composições minimalistas e introspectivas.
No que conhecemos como Trilogia alemã algo nos chamava atenção. Talvez tenha sido o único momento dos anos 1970 em que Bowie se apresentou com “roupas comuns”. Isto representava uma significativa transgressão estética na sua obra que estava em curso. Pois pouco antes havia sido momento apoteótico de seu personagem alienígena: Ziggy Stardust. E nestes LPs aparece um Bowie tocando vários instrumentos e utilizando experimentações inusitadas, que incluíam uso arguto de sintetizadores e efeitos eletrônicos.
A minha impactante descoberta de Bowie coincidiu exatamente com o instante de inquietações existenciais oriundas de uma adolescência conturbada. A arte de David Bowie estava inserida em dissonâncias literárias e musicais, que davam substância e significado à decisivas reflexões, naquele contexto de transição e maturação emocional. Foram muitas noites ouvindo canções como Heroes, Ziggy Stardust, Star man (antológica), Changes, a delicadíssima Life on mars?, Quicksand (do LP Hunky Dory: 1971). Ainda, os climas instrumentais (intensos e tocantes ao extremo): Warszawa, Sense of Doubt, Art Decade.
A referência musical destes dias era condensada ao repertório literário, que também causava furor transgressivo: Wilhelm Reich, Cruz e Souza, Dostoievski, Carlos Drummond de Andrade. E a Trilogia Alemã de Bowie era parte integrante de uma discoteca básica para noites de introspecção total. Faziam parte: Closer (Joy Division), Disintegration (The Cure), Darklands (Jesus and Mary Chain), Candleland (Ian Mcculloch) e The Game (Echo and the Bunymen). Um antigo aparelho de som (3 em 1) da National, com seus ruídos, corroborava o ritual denso e particular.
As informações que chegavam sobre David Bowie eram devidamente partilhadas com o amigo Ilton Fonseca e com o correspondente Tocoiévsky (um inventivo gótico de Santa Catarina), pois eram dias de “pré-internet” e por isso circulavam entre nós cartas, vinis, fitas cassetes, gravações em VHS e revistas musicais diversificadas. Ilton Fonseca foi responsável por apresentar-me, de maneira muito afetuosa, revolucionário material da música brasileira: Walter Franco, Tom Zé, Sergio Sampaio, Arnaldo Baptista, Tony Tornado, Jards Macalé, etc.
Lembro do impacto ao assistir (na TV Bandeirantes, numa madrugada fria) Bowie como protagonista no filme O Homem que caiu na terra (1976). Interpretando um extraterrestre que veio a Terra buscar água para seu planeta. Uma obra carregada do contexto estético de seu tempo, mostrando um artista “camaleônico” que trafegava muito bem entre música e cinema.
Muito vale conferir as tocantes palavras de Arthur Dapieve sobre Bowie: “Apesar do evidente paradoxo, nenhum artista capturou tão bem a fluidez do tempo, das pessoas, dos seres – rumo ao fim, individual, ou ao Fim, coletivo. Sua troca de personas e estilos foi a dramatização disso”. http://oglobo.globo.com/cultura/bowie-10-18475601
Decidi escrever este artigo ouvindo o LP Stage. Necessitava deste “ritual” de deixar a memória afetiva fluir. Pois uma emoção substancial fomentou minhas palavras ao trazer à tona tantas reminiscências, tantos registros que tiveram a cumplicidade da arte transgressora de Bowie. Enquanto escrevo, meu irmão veio lembrar: “Naqueles dias acordava com você ouvindo Changes”.
Neste momento só posso dizer: Obrigado, Bowie.