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Ataque aos sociólogos não passará!

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Circula, nas redes sociais, um vídeo em que um policial militar aposentado clama às autoridades e aos cidadãos que se levantem contra a chamada “ideologia de gênero” e seus supostos efeitos desvirtuadores do ideal da família e da educação das crianças. O autor do vídeo atribui a sociólogos à criação desse nefasto fantasma que assombra as famílias e os bons costumes nacionais. Em suas palavras, “a uma cambada de desocupados se autointitulando sociólogos, de vários países, que se reuniram em Pequim, capital da China, e criaram a famigerada ideologia de gênero”.

Além de proferir tolices e barbaridades sobre a construção social dos gêneros e da sexualidade, uma ideia muito bem fundamentada nas mais variadas áreas de pesquisas das ciências humanas, como a sociologia, a antropologia, a história e a filosofia, o policial militar agride professores chamando-os de “vagabundos” e afirmando que os docentes estão ensinando as crianças a “como beijar na boca, como levar o seu filho para os banheiros para que ele possa observar o pinto ou o pipiuzinho de sua coleguinha dentro do banheiro, apalpa-los pra sentir, assistir filmes eróticos dos seus pais…” e outras asneiras. Não satisfeito em sua alucinação verborrágica, que não apresenta prova alguma acerca do que afirma, o autor do vídeo diz que quem discute gênero e sexualidade na escola não possui “referencial moral” compatível com a tradição familiar e religiosa do Brasil, são “fantoches, bandidos, vagabundos, travestidos de professores, disseminando o mal, tudo de ruim para o nosso povo, principalmente para as nossas crianças”.

Se o vídeo se esgotasse tão somente no discurso do policial aposentado, ele seria apenas mais uma amostra da histeria ignorante e conservadora que o país atravessa na forma de delírios coletivos que ganharam o nome de “ideologia de gênero”, “ditadura gay”, “revolução bolivariana” e outras estultices. De todo modo, a liberdade de expressão é, também, a liberdade de se expressar sem propriedade, o direito de dizer tolices – o que, alias, o autor do vídeo faz com louvor.  Mesmo repleto de equívocos, distorções e agressões gratuitas e preconceituosas, o vídeo representa o posicionamento, tolo, desinformado, de um cidadão que faz uso de seus direitos numa democracia, ainda que seja para emitir juízos e ideias sem fundamentos, exceto aqueles, emocionais, que sustentam o seu próprio delírio e falta de saber.

Mas o que torna o vídeo ainda mais lamentável é que o dito cujo é mestre em Ciências Sociais pela UFRN e se arvora à condição de “professor”. Contudo, a julgar pelo conteúdo do vídeo, o autor não sabe nem o que é gênero e, muito menos, ideologia. Triste, mas isso nos diz algo de relevante, que não podemos desconsiderar quando pensamos em nossas pós-graduações e seus critérios de avaliação e diplomação.

ameaçaNos comentários ao vídeo, postado na página do facebook do autor, encontramos o que a ignorância pode produzir: ódio, preconceitos e mais ignorância. Por exemplo, o comentário de um dos perfis que seguem o autor diz: “acredito que devemos respeitar o homossexual como se deve respeitar um doente!”. Isso, sim, é ideologia, ideologia da patologização dos comportamentos e das formas de prazeres e desejos humanos que são estigmatizados por uma ordem que consagra a heterossexualidade como a única forma “normal” e “natural” de viver e experimentar a sexualidade humana.

Como é de se esperar, o obscurantismo caminha junto ao desejo da violência, o desejo fascista que anseia eliminar física e simbolicamente a diferença, o outro. Em outro comentário, lemos o seguinte: “A NOVA ORDEM É LOCALIZAR E EXECULTAR (sic) ESSES SOCIÓLOGOS FDPS”.

No Estado Democrático de Direito, a crítica e a divergência entre visões de mundo é um bem de civilização. O debate de ideias e posições é sempre bem-vindo e necessário, uma vez que possibilita ativar a reflexividade pública sobre temas de interesse comum, e que pode levar a um aprendizado mútuo que nos faz avançar e crescer como sociedade e indivíduos. O vídeo em menção passa completamente ao largo de tal princípio. Em vez de ideias, dados sobre o que pretende “debater”, “denunciar”, sobra pavonice e falsidades.

No entanto, ataques, acusações desequilibradas, intimidações e até ameaças à integridade física e moral do interlocutor divergente não é e nem pode ser aceitável para os poderes legais constituintes. Pois atenta mortalmente contra o Estado de Direito e contra a integridade física e moral de comunidades e indivíduos, um valor inestimável que assegura um mínimo de pacificação e civilidade. Os conflitos devem ser equacionados no âmbito discursivo e racional do debate público ou da justiça, quando se julgar que se infringiu os limites da lei. O inverso disso é a prática fascista, de eliminação, de subjugação à revelia das leis e da dignidade e liberdade da pessoa humana.

Negar as normas legais de convivência cívica e enxergar na exterminação dos divergentes a condição de libertação do mundo de um suposto mal que determinadas pessoas (homossexuais, militantes, comunistas, sociólogos etc.) portariam, enquanto um plano malévolo de dominação, é um delírio, uma alucinação ideológica, mas que pode produzir desastres e violências bastante concretas e reais. O apego colérico e irrefletido às suas próprias imagens do mundo e crenças é o combustível que incendeia a barbárie e os diversos fundamentalismos, pois, no desejo de destruição dos “Outros”, habita também a obscura pulsão de autodestruição do próprio “Eu” civilizado. Por mais esdrúxulo e rasteiro que seja o conteúdo do vídeo, não podemos nos omitir.

Nós, da Carta Potiguar, repudiamos os discursos de ódio e ignorância que pululam no país. É preciso agir e tomar medidas sérias a respeito; medidas pedagógicas, políticas, mas também jurídicas, quando necessárias. Intelectuais públicos, professores, pesquisadores, pais, militantes, movimentos sociais, estudantes, todos temos um papel político e civilizatório relevante no combate ao surto conservador e retrógrado que ascende no Brasil. E, se não o fizermos, podemos colher duros retrocessos nas liberdades individuais e direitos sociais, arduamente conquistados e ainda incompletos e parciais em sua real efetivação na sociedade brasileira. A Carta Potiguar, como um projeto que nasce e tem entre seus editores e colunistas, sociólogos, antropólogos, cientistas sociais, demanda medidas cabíveis contra as ameaças realizadas e manifesta seu repúdio ao conteúdo do vídeo e às ameaças. Nem a ignorância obscurantista nem ameaças de violência devem ser toleradas. Ameaças e ataques não passarão! E os sociólogos continuarão a incomodar e a desmontar toda forma de ideologia de dominação e sujeição dos seres humanos, pois, como diria um importante sociólogo, “a sociologia é um esporte de combate”.