O momento político que passa o país fomenta esta reflexão sobre as recentes e curiosas manifestações em defesa da “natureza”, da “origem” e das “verdades” pétreas a respeito de determinados papéis e lugares sociais, que estão sendo questionados. Porém, a reflexão fomentada neste artigo procura contextualizar as substâncias e teor destas manifestações, que trazem um elemento bastante curioso: a ignorância sofisticada.
Este tipo de ignorância tem uma peculiaridade muito curiosa, pois ela parte de indivíduos escolarizados e “esclarecidos” que concluíram o que se convencionou chamar de curso superior. Mas o acesso ao conhecimento não foi suficiente para uma melhor capacidade reflexiva e de torná-los melhores cidadãos diante da diversidade. Pelo contrário, a escolarização reforçou a intolerância e sectarismo diante da defesa de seus valores conservadores e preconceitos arraigados.
Fato pertinente, dos últimos anos, que nos provoca reflexão é a proliferação “desordenada” de instituições de terceiro grau em que prevalece a lógica do consumo. Isto é, uma formação que não tem comprometimento com a produção do saber que possibilita o indivíduo de libertar-se dos grilhões da ignorância e da incivilidade. Muitos possuem o “valioso” documento, que em nada contribuiu na capacidade reflexiva e continuam a perambular como analfabetos políticos e miseráveis interpretativos (mesmo sendo “sofisticados” e “escolarizados).
É nas redes sociais que observamos as mais bizarras expressões e opiniões sobre temas extremamente complexos, que nos exigiriam aprofundamento e pesquisa para formulação de argumentação consistente. E de pessoas escolarizadas, que não lêem sequer um livro por ano, que saem as mais aberrantes opiniões sobre maioridade penal, violência urbana, aborto, pena de morte, impeachment, direitos humanos, homossexualidade, ditadura militar, trabalho infantil, questão de gênero, etc.
Apresentam suas opiniões com impetuosa segurança e sem condições de perceber a profunda ignorância que alimenta seus discursos empobrecidos, permanentemente fomentados por seus valores conservadores e preconceitos arraigados. Exatamente por conta da inconsistência e superficialidade dos argumentos é que acontece a fácil adesão (irrefletida e aparentemente voluntária) á discursos fascistas, que prometem soluções “práticas” e “imediatos” para problemas sociais crônicos. Levantam a mão e repetem slogans das maiores referências do autoritarismo e conservadorismo do país.
Na contemporaneidade existe um poderoso referencial para o ignorante sofisticado “construir” suas opiniões, os que lançam seus argumentos “científicos” de fácil adesão: Malafaia, Danilo Gentili, Olavo de Carvalho, Lobão, Datena, kim Kataguiri (aquele mesmo que chamou o governo federal de totalitário!), Bolsonaro, etc. Impressiona-nos a fácil adesão aos dizeres destes. Adesão, porém, com pouca reflexão, pois o mesmo, não têm condições de aprofundar-se nos temas que tanto vocifera como se fosse sério conhecedor. Deixa-se levar pela superficialidade da análise reducionista e tacanha dos fatos cotidianos.
Esta gente de “referência” lança (de forma descontextualizada) seus posicionamentos radicais com base na intransigência e numa espantosa ignorância disfarçada de discurso científico ou político. Por terem visibilidade midiática, acabam por ganhar adesão, aplauso e admiração de pessoas com baixa capacidade de discernimento e que se encantam com as soluções “práticas” e “imediatas” presentes nos discursos “revoltados” e “comprometidos” com o Brasil.
O perigo é que estes mesmos discursos são oficialmente representados por bancadas no Congresso Nacional, que refletem a mentalidade conservadora e reacionária de parte significativa da população brasileira. Desde representantes das “leis de Deus”, que lutam em defesa dos princípios “naturais” da vida, até representantes do empresariado, do latifúndio e mafiosos do futebol.
Talvez o que falte ao ignorante interpretativo é o reconhecimento de um importante ponto de partida reflexivo: O Brasil é um país origens absolutistas, autoritárias, patriarcais e escravocratas. E a sociedade contemporânea, em seu funcionamento e dinâmica, apresenta (tristemente) poderosos resquícios destas origens. Mudanças jurídicas aconteceram, mas a mentalidade e muitos hábitos deste período permanecem, por isso que podemos considerar o país (majoritariamente) como conservador e de muita resistência a mudanças que vão de confronto com sua “natureza” e suas “verdades”.
E que esta “natureza” humana e estas “verdades” nada mais são do que uma junção de estereótipos imagéticos-discursivos que acabaram por se cristalizar, foram se solidificando a partir da difusão, da construção do hábito e da tradição corroborados pelas estruturas políticas, científicas e religiosas. Pertencem a um dado contexto histórico, político, geográfico específicos que devem problematizados e desconstruídos.
A mulher, o pobre, o homossexual, o negro não podem sair de “seus lugares”, pois acabam por desarticular esta “natureza” e estas “verdades”. Uma clara demonstração de inquietação são as reações conservadoras às mudanças que tem “desarticulado” as definições pétreas e seculares dos lugares e papéis sociais. A exclusão, o racismo, o machismo, a homofobia são tão “naturalizados” na dinâmica social de nosso país, que causam espanto e inquietação as tentativas de inclusão e enfretamentos dos preconceitos arraigados.
Um exemplo simples de reação aberrante do ignorante sofisticado foi o teor das opiniões emitidas sobre a citação utilizada na prova do Enem 2015, da filósofa Simone de Beauvoir (“Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”). Reações violentas de quem não é capaz de entender ou simplesmente elaborar uma reflexão sobre o tema sugerido. Pois a citação desta filósofa nos faz pensar que os elementos biológicos não os definidores da constituição do que conhecemos (cultural, política e sexualmente) como mulher.
A inquietação é fomentada exatamente por que esta citação questiona um lugar “definido” pela “natureza” das mulheres, tão alimentado por discursos, hábitos e tradição da sociedade brasileira. E os discursos de “origem biológica” ou das “leis de Deus”, são os principais sustentáculos para que papéis e lugares sociais não sejam alterados.
O ignorante sofisticado comporta-se como se o Brasil não fosse um país historicamente autoritário e excludente. E as mobilizações e questionamentos daqueles que são os maiores atingidos pelo autoritarismo e exclusão, não passam de busca de “privilégios” e favorecimentos social.
Então, o que fazer diante de um ignorante sofisticado? Seja o mais didático e civilizado possível. Ofereça um livro, indique um autor de referência do tema que o mesmo diz ser sabedor. Também convide o mesmo para participar de eventos que tenham a presença de pesquisadores, para que assim se formule argumentação, questione, pense, interprete e acabe descobrindo que suas falas agressivas e superficiais sobre temas complexos, são resultado da ignorância (mesmo que “esclarecida” e sofisticada).
OBS: Ao pronunciar palavras como pensar, questionar, refletir, provavelmente o ignorante sofisticado irá lhe chamar de “comunista”, “esquerdista” e até dizer que suas ideias fazem parte de um projeto “bolivariano” para o Brasil…