Por Wagner Uarpêik
O incêndio no Museu da Língua Portuguesa é parte de uma espécie de compensação material pela crescente desmaterialização da língua e da arte. É sua alegoria gritada na primeira pessoa do plural, fantasiada de terceira pessoa do singular – eis o sujeito oculto no texto da vida. Nada mais que um “triste acidente”, um “descaso político”: purgam-se todos, cúmplices e leigos.
Malgrado o incêndio possa ter sido um ataque terrorista eleitoral, a farsa menos premeditada aqui é outra, certamente: mais uma vez a “cultura” pretende se desculpar dos próprios fracassos, lançando-os para baixo dos tapetes do arbitrário natural e da incompetência política.
Mas o karma é uma dívida intransferível e as lições estão aí para todos que não sejam analfabetos analógicos. A natureza nos fala diretamente, em seu próprio idioma de fogo, ao lado do enorme relógio da Estação da Luz: o verbo do animal humano anseia por desaparecer; nunca antes foi tão estéril, trêmulo, binário, especulativo, virótico. Mesmo ultimato exemplar para o que restou da arte: o discurso da arte destronou a obra de arte, e sendo assim, boa parte da arte contemporânea poderia desaparecer a qualquer momento e quase ninguém se daria conta.
Ainda assim, como se fosse divertido, decente e lucrativo celebrar a Morte do Homem, o mote turístico, ativista, folclorista, espetacular e sociológico da vontade de “cultura” é uma crescente pandemia global.
Ora, o mantra culturaloide é um consenso negativo. A apologia da cultura é um dos últimos refúgios de um sistema condenado ao fracasso. É uma utopia negativa (uma distopia colorida de rosa, em último caso) que se propaga facilmente pelo planeta por que, como a “liberdade”, o “indivíduo”, o “progresso”, o “sucesso”, a “informação”, a moda, o nacionalismo e a “democracia”, consuma uma ideia fácil, rasteira, capaz de fermentar o pão social e anestesiar (jamais poderá curar) a tenebrosa crise existencial que há muito assola nossa civilização.
Logo, o slogan pop, publicitário, político e acadêmico segundo o qual a “identidade” cultural salva, avança de maneira avassaladora, também por que sentimos saudade da paternidade de uma autêntica Cultura nacional ou étnica magnetizando nossas vidas, e de fato, ao adorarmos a chamada “cultura”, ou pelo menos seus vestígios e ficções, oferecemos uma espécie de luto a estados de espírito coletivos ameaçados de extinção.
O incêndio no museu paulista é, assim, mais um álibi para nosso interminável luto inconsciente pela “alma” nacional. É nossa maneira pouco corajosa de lamentar nossa profunda falta de Cultura – ou seja, a ausência de uma cosmologia nobre, forte e iniciática que remende e cure os estilhaços sociais em que agonizamos –, e de constatar que, em certo sentido, jamais fomos um Povo.
Por que chorar pelo Museu da Língua Portuguesa, se podemos decifrar a poesia do real, e arder à altura do incêndio que nos ajuda a confessar nossos crimes? Choramingar por um museu que já foi xerocado digitalmente é ignorar que todo museu da língua é também um cemitério, e que todo excesso atrai sua própria sombra compensatória. Não lamentem: em breve o duplo digital do acervo vai circular pelas passarelas do Facebook, o maior museu instantâneo da história!
Ainda precisaremos de muitos bombeiros e incendiários do espírito, meus amigos!: o tempo das maiores catástrofes civilizadas apenas começou. Aliás, Brasil tem a ver com brasa; é nossa vocação, nosso destino simbólico. Não sejamos frouxos: aprendamos logo a caminhar sobre o fogo!
Ora, o que o Brasil poderia dizer de realmente belo, nobre, heroico e massivo, agora mesmo e em voz alta? “Fora Dilma!”, “Fora Cunha!”, “Só Jesus salva!”, “Feliz Natal”, ou “Goooool”?
Piadas à parte, ao contrário do que sucede com a arte, ninguém duvida que o Português está vivo e que continuará sambando até o fim do mundo.
Em sua terrível performance de comoção, Alckmin nos ofereceu – sem-querer-querendo – uma pista elementar para respirar além da cortina de fumaça sentimentalista que vai se espalhando pelos estratos intelectuais e artistas do país – como um velório pelo velho fantasma da cultura nacional –: o Museu da Língua Portuguesa “traduz a alma do povo brasileiro”. Ora, as metáforas seguem suas próprias leis e frequentemente acertam no alvo certo errado: sim, meus amigos, a tal “alma” brasileira não passa de um museu incendiado!
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Fotos
Portada: G1
1 (de cima para baixo): Google, autor desconhecido
2 : G1