Por Luma Medeiros.
El bombita e o governo anônimo do burocrata Bombita (bombinha) é um dos contos que compõe o longa Relatos selvagens (Relatos Salvajes, Argentina, 2014), obra dirigida pelo argentino Damián Szifrón que com uma ácida irônia, satiriza situações banais de relações humanas que se findam no inesperado e no exagero. O sardônico episódio narra a saga de um homem, pai de família, engenheiro que trabalha com explosivos, morador da capital de Buenos Aires que passa a ser bombardeado de multas de trânsito e tem seu carro guinchado e preso indevidamente várias vezes. A briga pela liberação do automóvel junto da insatisfação com o departamento de trânsito o envolve em lutas sem respostas pelos seus direitos, pois se trata de uma empresa burocratizada que só possui máquinas ou atendentes de caixa que cumprem ordens.
A revolta de não poder se rebelar é tão grande que sua solução final é agir utilizando-se da violência e selvageria contra um sistema silencioso e excessivamente burocrata, fazendo-se perceber em uma sociedade oprimida que só segue regras, e de opressores ausentes representados por atendentes autômatos, reificados e despersonalizados de seu caráter humano.
O instinto de selvageria do homem que está presente em todos os contos do longa, e particularmente em Bombita, é a representação do atropelamento do contrato social, contrato este garantidor da segurança em troca da liberdade, que é atacado cada vez mais por ações apolíticas da burocracia anônima que tem sua imagem invisibilizada, mas que se faz presente por meio de regras, de multas e sanções.
Com todas as permissividades que a licença poética que a obra de arte dá, de (re)criar e de (não) contar o que é real, separando-se a realidade da liberdade do artístico, a representação do governo anônimo do burocrata presente na cômica tragédia, é ainda o da realidade globalizada. Esta a qual o atendimento ao cliente é feito por máquinas com vozes humanas pré-gravadas, ou de atendentes robotizados por trás de vidros, que não resolvem problemas, não escutam reclamações, não sabem tirar dúvidas e são instruídos para cumprir a função sem vínculo de responsabilidade nenhuma. Isso é o que Hannah Arendt fala nos seus escritos sobre a política de “governo despótico onde „ninguém‟ o exerce”, confirmando a assustadora maldade do governo burocrático que em proporções não menores ao despotismo cala o humano, inviabiliza o discurso, constrói muros nas relações e não aceita o que é diferente, ou seja, mata a política, aquilo que é feito na pluralidade e na busca em conjunto da liberdade do homem.
Na burocracia sistêmica não há a opção do diferente, do debate, da (re)construção através da fala e da troca, não se pode dirigir a palavra a esse “ninguém”, nem se rebelar contra o sistema. O sujeito fica imobilizado a não ter contato, e posto do outro lado de uma vala que o limita na comunicação com o seu próprio Estado, com as instituições as quais ele mesmo alimenta, a mercê de regras que os Outros – outros anônimos – fazem, e a fazem para um homem-massa. Sim, de um lado o “homem-massa” que é o Darín, ator que faz o personagem principal do episódio, com mais todos que estão na fila do Departamento de Trânsito, do outro o anônimo das ações públicas e de personalidade secreta, que está por trás até mesmo do gerente que também só cumpre ordens.
Lidar com o homem-massa é se utilizar tanto da subestimação quanto da ganância. É depositar a descrença que haja uma forma dos homens se organizarem entre si e sempre enxergá-los como o caos, que não têm – ou não seria correta – sua própria ordem. Ainda, como crê Arendt do medo humano que a humanidade se autodestrua por meio da política e dos meios de força. Com isso, burocratizam-se serviços os quais não há retorno nem contestação, objetifica o trabalho, cria-se uma falsa igualdade entre os homens, encarando de forma indiferente as necessidades das pessoas.
A burocracia sistêmica só serve ao opressor possibilitando um legalismo cruel de (des)atendimento ao cliente/servidor, causando o distanciamento e garantindo apolíticas públicas. Não é em vão que o modelo é importado e adotado como padrão na sociedade globalizada, na falsa promessa do tratamento paradoxal da impessoalidade para tratar com pessoas: de deixar a cargo de máquinas – e homens-máquinas – a missão da insensibilidade.