Por Francisco Santiago Junior (Historiador e professor da UFRN)
Não sendo estudioso do extremismo político, mas interessado em história das religiões, venho na esperança de esclarecimento algumas questões relativas aos ataques em Paris. Menos do que uma resposta a Alípio Sousa ou Hanna Saito, trata-se de ampliar o debate frente acontecimentos que ameaçam consolidar associações perigosas entre religião, dogmatismo e extremismo. O cenário político atual brasileiro – nossa pavorosa bancada religiosa com pauta fundamentalista – torna os atentados a Paris espelhos deformados das ansiedades políticas nacionais. Para evitar estereótipos dividi a explanação em 3 pontos: sobre religião; sobre comoção social; e, finalmente sobre os ataques a Paris.
1. De fato, frequentemente as religiões monoteístas serviram como legitimação de violência simbólica e física resvalando genocídios literais e culturais. A inquisição, a cristianização dos nativos americanos e as guerras religiosas europeias no século XVII foram apenas episódios dos mais conhecidos. O cristianismo, judaísmo e islamismo são religiões dogmáticas (nem todas o são) que normatizam e fiscalizam o acesso ao sagrado(monopolizando como chegar a Deus), a relação com o outro(definindo a in/dignidade do estrangeiro) e o espaço público (gerenciando as relações entre seus membros). Até o século XVIII, as divisões entre cristãos e não-cristãos definiram muitas das simpatias gerais dos europeus com não europeus, ainda que nem sempre os cristãos tenham concordado entre si e – mais importante – nem sempre por razões religiosas.
A ética cristã desde sua origem tem uma contradição fundamental: a defesa da Caridade e do Amor combinada com a segregação e violência contra os desviantes morais, os desviantes da fé e os pagãos. A religião normatizada, neste sentido, é controladora. Contudo, também é uma forma de pensamento no sentido pleno da expressão, pois sempre desenvolve múltiplas formas de vivência religiosa (de religiosidade) dentro de um mesmo credo, como o demonstram, no mínimo, a tradição da teologia cristã, da tradição rabínica, da filosofia árabe ou a ‘exegese’ hinduísta dos Vedas, marcadas todas por altas taxas de reflexividade.
A ideia que a reflexividade é uma qualidade do pensamento racional ocidental laico é um mito. Contudo, e mais importante, a reflexividade ocidental, especificamente, tem também uma matriz religiosa. Uma vez que a vivência religiosa jamais fora homogênea, episódios como a reforma protestante, por exemplo, foram quebras do monopólio do pensamento e deram origem ao princípio da liberdade religiosa, futura matriz das noções modernas de liberdade e de direitos humanos. A religiosidade não deve ser confundida com dogma religioso. As religiões/religiosidades são formas de pensar plurais, as quais instituições oficiais tentam normatizar e homogeneizar, frequentemente de maneira sangrenta.
Evidentemente, não há como negar, a iconofobia e iconoclastia típicas do judaísmo, do cristianismo e do islamismo. Transformando o deus dos outros em falso deus (ídolo) e acusando a fé alheia de idolatria, a violência religiosa foi alimentada por uma ansiedade iconofóbica nas três “grandes” religiões monoteístas, cujo episódio inaugural da iconoclastia fora, sem dúvida, o de Moisés destruindo o bezerro de Ouro na descida do Sinal, ato canônico de agressão simbólica e física.
Mas a iconoclastia não é um privilégio dos cultos religiosos e/ou monoteístas. Como excelente estratégia política, a iconoclastia prospera sem combustível religioso. Se a religião pode alinhar a iconoclastia com iconofobia (localização de ídolos, sua rejeição e necessária destruição), estas últimas não dependem daquela. O racionalismo laico esvaziou o conteúdo religioso e secularizou a rejeição das formas de pensar religiosas. Suspeito que o discurso de certo ateísmo contemporâneo à Dawkins e o texto de Alípio Sousa na Carta Potiguar remetem à mesma matriz iconofóbica ao fazer da religião sinônimo de terror, esquecendo que a prática iconoclasta é constante política. Essa estranha semelhança faz questionar se não haveria um elemento de culto na desqualificação à “razão religiosa”?!
Se o pensamento laico ocidental (para falar somente dele) teve uma de suas matrizes na reflexividade religiosa nas próprias religiões – lembremos que refletir não é harmonizar –, ele não significou o abandono de práticas políticas consolidadas. Evidentemente o arbítrio público das querelas religiosas é muito difícil e a laicização pública é o melhor caminho para combater excessos de grupos sociais dogmáticos. A vantagem da sociedade laica democrática é administrar conflitos sem o arbítrio de divindades, fundamentalmente porque se sabe que conflitos religiosos são, em geral, disputas por bens simbólicos e materiais (terras, propriedades, lugares, recursos naturais, etc.). Espero estar claro que poder religioso e poder político não podem se combinar para reger o espaço público atual. Mas espero também ter ficado claro que religiosidade não é o mesmo que extremismo; e laicidade não é o mesmo que tolerância – que o diga a política externa dos EUA e França.
2. De onde vamos ao segundo ponto. A cultura religiosa define simpatias ou rejeições das comunidades. A caridade e a solidariedade cristãs, neste sentido, nunca foram para todos. Elas convivem com as outras formas de divisões sociais (raça, cor, sexo, etnia, gênero, nação, grupo social, região, etc.), as quais geram simpatias próprias que podem concorrer a favor ou contra as diferenças religiosas. A comoção por tragédias como os atentados em Paris ou a lama tóxica no rio Doce, por exemplo, são atravessados por múltiplas simpatias e antipatias ‘laicas’ e religiosas. A comoção, portanto, varia conforme as maneiras como já dividimos previamente os outros, as quais funcionam com ou sem a predominância de um enquadramento religioso. As atuais reações da França e EUA no Oriente, por exemplo, marcadamente laicas, são exemplos de comoções seletivas e violências. Qualquer comoção depende, necessariamente, da maneira como as várias simpatias (de raça, de nação, de etnia, de grupo, de gênero, de religião, de região, etc.) se relacionem entre si. Aliás, para ser solidário com uns e não ser com outros, tem-se que acentuar os mecanismos de rejeiçãoe controlar os mecanismos de comoção ao mesmo tempo.
Pense-se, por exemplo, que a insatisfação dos habitantes no que hoje é a Síria, devido a sua trajetória contínua de conflitos internos alimentados (construídos) pelas potências ocidentais e orientais (Rússia/ URSS) deu origem ao ISIS, essa organização internacional. O ISIS capitaliza as antigas formas de segregação islâmicas, fiscaliza as formas de solidariedade, explora as fragilidades das instituições sociais e faz uma campanha de polarização antiocidental, anti-laicização e anti-qualquer-outra-religião. O ISIS identifica o laicismo e o cristianismo num mesmo complexo que apelida de “Ocidente”. Há ali uma rejeição iconoclasta dupla: do credo e do direito a não ter credo. O ISIS advém de um fundamentalismo político que capitaliza a religião em comunidades nas quais a cultura religiosa é pertinente, recorrendo a quaisquer meios de expansão destrutivo, tanto contra islâmicos como contra não-islâmicos. Como chamou atenção o filósofo francês Bernard-Henry Levy, o ISIS não deve ser concebido simplesmente como uma organização terrorista, mas como uma organização fascista que configurou um território para si na Síria e Iraque. O fascismo pode ser de diversos tipos, usando de violência com justificativas religiosas para fins políticos. A leitura do ISIS do Islã é uma edição na qual se acentua o que interessa ao expansionismo político-militar. Sua frente nega qualquer comoção frente o sofrimento alheio em prol da nova Jihad em chave fascista.
Mas o terrorismo é um termo ambíguo no jogo político global. Faz parte da política internacional de mercado globalizado, principalmente no que se refere às ações de guerra. Sua primeira regra é que o terrorista é sempre o outro que realiza um ataque invisível; e seu discurso marca moralmente quem o perpetra. Como discurso seletivo, instala simpatias e impede a comoção para com o grupo/comunidade/país identificado como ligado a ele. O terrorismo permite com que os “outros” não sejam mais considerados como pessoas, não sejam pensados como vidas (ao menos vidas com valor), sejam enquadrados como alvo da aniquilação.
O “atentado terrorista” instaura o terror na população-alvo e é classificado por esta como um ato de guerra que lhe permite, por tabela, também uma declaração da guerra. Visto do lado das populações das potências ocidentais vitimadas pela ação terrorista, o ISIS só pode receber retaliação “legítima”. Contudo, a ação imperialista e intervencionista instala o terror nas zonas de ação: o ataque ao Iraque por Bush, na década passada, assim como os ataques atuais (franceses e americanos, como neste final de semana) à Síria têm o mesmo efeito – um estado vira, em suma, um agente do terror. Contudo, não haverá comoção ocidental uma vez que o atentado terrorista camufla o terror de estado das nações que se defendem do ISIS. Como espada de dois gumes na guerra do mundo global, o terrorismo permite aos estados agirem com violência, tornando irrelevante e disfuncional num dado cenário político, a matização dos motivos pelos quais eles próprios foram vítimas de atentados. A consequência imediata é que não há vida perdida que tenha valor na retaliação aos estados terroristas não-ocidentais.
É evidente, porém, que o fascismo do ISIS tem dimensões terroristas, pois segundo os esquemas daquele, os franceses e estrangeiros mortos nos atentados de Paris no dia 13 de novembro não eram vidas com valor. As guerras internas no complexo cenário da Síria e Iraque evidência um cenário de crise. Frente um “estado” que nega a vida de tantos dentro de suas próprias posses, o fascismo do ISIS mal consegue ser legitimado como “insurgente” frente à sua causa mascarada de jihad, uma vez que objetivamente mata homossexuais, mulheres, cristãos, judeus, xiitas e outros segundo as circunstâncias. Se o discurso do terrorismo permite que os ocidentais/ocidentalizados (laicos e/ou cristãos, mulçumanos, judeus, etc.) desumanizem os “terroristas”, o ISIS também já desumanizou seus outros. Parece-me que a diferença entre a política internacional francesa/americana e o ISIS é de alcance no uso da guerra.
Mas há algo mais perverso no discurso da guerra ao terror, esta outra modalidade de fascismo, e que parece ocorrer agora na França, tal como ocorreu nos EUA pós-11/9: a instauração de medidas de controle como certo terror de estado dentro das fronteiras da democracia. Volta-se o medo e a desconfiança contra as próprias populações dos estados democráticos. Pois a segunda regra do terrorismo é que o terrorista é invisível: explode a boate, choca o avião contra o prédio ou vem como ataque aéreo inesperado. É preciso torná-lo visível, mas como o terrorista pode ser qualquer um, a vigilância de todos e o cerceamento dos direitos democráticos (o fascismo) torna-se a “única” defesa que os governos consideram possível. O terror de estado atinge mais do que aos árabes no Oriente ou os árabes na França e nos EUA: as vítimas são os direitos na sociedade democrática em geral. Se as populações de imigrantes na França serão as mais duramente atingidas, a liberdade individual e coletiva em geral corre perigo, como se vê atualmente na imprensa francesa, que encara a contradição de cercear a liberdade para salvá-la. Não surpreende! Por bem menos, aqui no Brasil, desde 2013, se pede a volta da ditadura militar para salvar a democracia – e acentue-se, nem todos por fundamentalismo religioso.
Iluminadora a metáfora usada pelo filósofo quando afirma que o terrorismo é uma doença autoimune, uma “infecção” na qual a comunidade, o corpo político se ataca na tentativa de se defender de um mal que ele identifica no outro, mas que desde o início está em si mesmo. Seja na França, nos EUA ou na Síria.
3. E aqui encerramos com a cruel semelhança entre as políticas laicas e religiosas em confronto no momento. O fascismo e o terror são necessariamente iconoclastas e genocidas e se harmonizam com os interesses políticos/econômicos e com as intolerâncias cristãs e islâmicas. Atacam acima de tudo lugares e símbolos de sociabilidade, os quais permitem a localização/eliminaçãodo inimigo: seja contra os cristãos no Oriente (alvos ISIS), ou os sírios, imigrantes e seus descendentes (na França), a guerra ao/do terror procura dar corpo visível ao criminoso.
Enquanto os voos rasantes dos aviões franceses e americanos caem como tempestade sobre as populações sírias (militarizadas ou não), num massacre sistemático e convencional, percebe-se qualquer coisa de específico nos atentados a Paris. Eles contemplam algo mais do que simplesmente um ataque a símbolos de poder como ocorrera em 11/9 nos EUA. As várias possibilidades de ação terrorista incluem (frequentemente de forma combinada) a tentativa de aniquilação populacional (típica das potências ocidentais), a destruição de ícones e a matança localizada (ambas típicas de algumas organizações extremistas como Al-Qaeda e ISIS). Como estratégia de guerra, matar pessoas em lugares/ícones públicos é retaliação fundamental e instalação do terror. Não por acaso a destruição do patrimônio mundial da UNESCO pelo ISIS na Síria e Iraque, desde 2014, tem sido uma atitude sistemática de rejeição de signos ocidentais numa clara iconoclastia política.
Ora, os ícones atingidos em Paris tornam-se sinais de que desta vez há um ataque a modos de vida, uma vez que os alvos foram teatros, cafés, restaurantes e um estádio. Fica clara a rejeição a uma cultura em seus símbolos laicos francesa/ocidental. Como disse um amigo, professor Clóvis Grunner, professor da UFPR, rejeita-se a França potência intervencionista ‘cristã’ & a nação cosmopolita na qual emergiu muitos dos valores seculares, dos direitos humanos e da democracia.
O discurso moralista do ISIS foi explícito: os alvos não foram a Igreja Sacré-Coeur ou a fonte de Saint Michel (símbolos cristãos), a Torre Eiffel, Les Invalides ou o Panteon (símbolos políticos), o Palácio de Versailles ou o Museu do Louvre (símbolos culturais). O modelo de guerra do ISIS chama atenção para as consequências da atuação imperialista do estado francês. Destaca-se para mim o quanto tudo é consequência da desastrosa política externa de François Hollande. Parece que sob sua gestão, o modo de vida parisiense entrou na mira do ISIS. Nada de guerra religiosa – trata-se de estratégias de guerra num cenário global de ambos os lados.