Por Alipio De Sousa Filho, Cientista Social, professor da UFRN
Não é difícil ao ateu ou ao agnóstico considerar que seus posicionamentos estão em vantagem, do ponto de vista filosófico ou sociológico, em relação aos posicionamentos religiosos, e também do ponto de vista político-ético-moral: não pertencer a nenhuma das religiões existentes, não professar a crença em nenhuma divindade, não se deixar dominar por crenças sem fundamento, torna possível uma posição neutral, relativamente aos pontos de vistas religiosos, na análise política dos fatos e na construção de posições sobre o que queremos como ambiente e vida coletiva para todos os diversos seres humanos em nossas diversas sociedades.
Refletir sobre a vida e o mundo sem ideias religiosas na mente é uma das maneiras de experimentar o que propriamente pode ser chamado de pensar, pois livre das amarras nas quais as ideias religiosas se constituem. Pensar livremente, deixar o pensamento criar seus próprios conceitos, ideias, sem a interferência de ideais que lhe são exteriores, que lhe precedem e que se impõem como verdades às quais não se pode desobedecer, é o único modo de efetivamente o ser humano produzir conhecimento, novidades, tornar viva a ação da reflexão por meio da abstração cognitiva. Tudo o que não seja isso é pura perpetuação de pontos de vista estabelecidos, repetição dogmática, em obediência ao que se crê imutável, infalível. Em grande medida, é isso que são as religiões. Diferentemente de outras ideias (científicas, filosóficas, políticas), as ideias religiosas não admitem contestação, não admitem ser questionadas e substituídas. Elas não são propriamente ideias, são crenças. Os modos de pensar e saberes não religiosos admitem sua própria contestação, sua reformulação. As crenças religiosas são refratárias à reflexão, ao questionamento, a toda problematização. Não são propriamente um pensar.
O ateísmo ou agnosticismo são pontos de vistas vantajosos também porque podem pensar a própria existência das religiões como fenômenos humanos – o que não quer dizer de modo algum “uma necessidade humana” –, pois são fenômenos sociais, e, assim, defendê-las indistintamente em seus direitos de existir, mas, diferentemente do que pretende cada uma delas: defendendo o direito de todas existirem na coexistência do pluralismo religioso, mas, ao mesmo tempo, sem a permissão para nenhuma delas rebaixar a outra e rebaixar outros tantos direitos daqueles que não professam qualquer de suas crenças. E sem que nenhuma possa reivindicar avançar sobre o Estado para impor suas crenças à sociedade por meio de ente que, público, não pode representar nenhuma delas em particular. O Estado funciona (ou, por definição, deve funcionar) como o ateu ou o agnóstico: situar-se em posição neutral que não permita o domínio de crenças religiosas prevalecer em suas ações políticas, de produção de conceitos, ideias, leis, normas.
O filósofo esloveno Salvoj Zizek estava certo quando escreveu anos antes que “o ateísmo é um legado europeu pelo qual vale a pena lutar”. É claro, a Europa da tese de Zizek é a moderna, a Europa contemporânea, não é aquela que impôs a várias partes do mundo seu cristianismo, usando chicotes, como receitavam os jesuítas e os calvinistas (um deles escreveu que, no Brasil, o cristianismo teria que vestir os corpos indígenas nus nem que fosse “à coup de fouet” – a chicotadas. Isso foi no século XVII. O ateísmo veio depois. Mas, sem discordância com o filósofo, de fato, a posição ateísta tornou possível não apenas que o Estado moderno se tornasse laico – a laicidade é uma forma de “ateísmo” ou “relativismo a-religioso” – mas também tornou possível a própria proteção do Estado aos que escolhem adotar crenças religiosas: tornando a esfera pública democrática “um espaço público seguro para os que creem” (Zizek).
Mas as diversas correntes religiosas, igrejas e crentes não são agradecidos com os posicionamentos modernos, laico, secularista, relativista, em grande medida influentes nas ações do Estado. Todas elas querem o Estado para si, um Estado que favoreça suas posições, crenças. E sempre em nome de uma “verdade” que é “propriedade particular” de cada uma delas. No Brasil, hoje, vemos a ofensiva dos cristãos conservadores, evangélicos e católicos, cobrando do Estado que abandonem suas políticas emancipatórias de reconhecimento de direitos e demandas de gays (lgbt), mulheres, jovens, que consideram atentados ao que chamam de “família cristã”, “educação moral da família”, ameaçadas pelo que – numa inversão cínica – nomearam “ideologia de gênero”.
Na realidade, todo pensamento religioso pratica seu “terror”, aterroriza o pensamento, atemoriza o pensar e as pessoas, com suas imposições, exigências. E, por essa razão, não se torna estranho que um bom número daqueles que adotam crenças religiosas pense a vida e o mundo de uma maneira dogmática, autoritária, intransigente, e exerça seu “terrorismo” ideológico sobre os outros. Visando impor suas visões, sem admitir questionamentos. Em maior ou menor medida, todas as religiões praticam, seu terrorismo particular sobre seus próprios membros e tentam fazer o mesmo com todos os demais que não as acolhem. Como diriam os mais jovens hoje, “tocam o terror” para impor suas convicções, seus dogmas, suas crenças arbitrárias. Sabe-se como nas famílias – de todas as religiões – crianças, jovens e adultos são fustigados com as cobranças diárias de seguirem crenças, dogmas, valores, muitas vezes em contrário aos seus desejos, ideias, escolhas. Impondo-se condutas morais, reprimindo desejos, censurando opiniões etc. Ainda que tudo possa parecer e aparecer como adesão espontânea, história familiar ou comunitária. Para situar um único exemplo, são muitos os casos de filhos e filhas gays expulsos de suas casas ou violentamente submetidos a regimes de vigilância e sujeição à autoridade familiar em nome de convenções religiosas.
Passar desse “terror”, que persegue pensamentos e pessoas, para o terrorismo assassino, que executa, elimina, mata pessoas, não é algo difícil, não é algo exclusivo de nenhuma religião e não é algo que ainda não tenha ocorrido na história de diversos povos e de todas as religiões. Talvez excluídas dessa história poucas delas, muito mais próximas de filosofias que propriamente religiões. O judaísmo nasceu “tocando o terror” em todos os povos que não aderiram às suas convicções, maldizendo todas as “divindades” que não eram o Javé hebraico, amaldiçoando toda “idolatria” aos “deuses falsos”. E o que não ficou apenas em palavras. É ler o Antigo Testamento e constatar! Seu herdeiro direto, o cristianismo seguiu a mesma linha: criou suas Cruzadas, sua Inquisição, a evangelização colonizadora (que matou grupos humanos inteiros; os povos indígenas das Américas são um exemplo!) e, hoje, permanece fornecendo seus fundamentalismos de muitos estilos, não menos terroristas em palavras e atos. Nos EUA, muitos casos de tiroteios em escolas, cinemas e ruas são realizações de cristãos fundamentalistas em nome da fé. Os mulçumanos, desde o ano 622, fazem suas “jihads” contra populações locais que vão encontrando e chamando de “infiéis”, por não professarem a crença islâmica. Tão logo após a morte de Maomé, avançaram sobre diversos territórios e, no século 8, sobre o norte da África e península Ibérica, submetendo populações locais ao Corão por meio da espada. Os “califas” do DAESH (termo que, num jogo de palavras em árabe, significa “alguém que pisa e esmaga”, e, por esse significado, rapidamente substituído pelos seus próprios militantes por um outro nome: o autonomeado “Estado Islâmico” de hoje, ou ISIL, ISIS, EI) não ficam nada a dever aos califas de antes. Como antes, os “califas” do EI executam pessoas, enterram crianças vivas, escravizam sexualmente mulheres, degolam seus “inimigos”.
Estranho, então, que ateus, agnósticos, opiniões de esquerda, anarquistas, queers, descolonizadores, entre outros, queiram agora “relativizar” e “ponderar”, como “consequências” da história (sobretudo “consequências” das presumidas ações das chamadas “potências ocidentais”), os recentes casos, nos últimos anos, de atentados terroristas praticados pelo chamado “Estado Islâmico” e pela Al-Qaeda. Ainda, fala-se do “risco” das “comunidades muçulmanas” pagarem um preço alto, ao serem todos os muçulmanos “confundidos” como cúmplices dos terroristas, seus apoiadores, financiadores, protetores. E mais estranho ainda porque pretendem com isso parecer críticos das potências imperialistas e capitalistas que seriam as responsáveis pela gênese do terrorismo de facções do islamismo fundamentalista. Alguns que são verdadeiros populistas de um oportunista “amor” aos palestinos, aos muçulmanos – amor de última hora!
Que existem populistas de direita, na Europa e em outras partes, que aproveitam o momento para sua pregação xenófoba, racista e islamofóbica, não há dúvida. Mas eles são uma minoria. E isso já ficou mais do que provado em mais de uma circunstância. Todavia, não se pode pedir às populações europeias, americana e igualmente de outros países atingidos (incluindo aquelas do mundo árabe e mulçumano) e aos seus governos que não acionem medidas e suas forças militares para combater aqueles que lhes ameaçam e à vida de seus cidadãos. Aqui, não há que se perder o foco da análise: a facção sunita Estado Islâmico não é flor que se cheire. Ela é mortal! Ela é mesmo “daesh”! O Estado Islâmico é o ápice do terrorismo das religiões! É apenas o ápice do que estas praticam em suas ações cotidianas. Dizer que o islamismo ou que os muçulmanos não podem ser “confundidos” com terrorismo é uma besteira sem tamanho. Ninguém os confunde! Mas pode tornar-se uma desfaçatez quando isso sair da boca de certos islâmicos. As mesquitas, pelo mundo, estão cheias de pregadores fundamentalistas radicais, doutrinadores, difundindo ideias obscurantistas e ódios contra um presumido “Ocidente infiel”. Desejosos de transformar o mundo inteiro em mundo mulçumano. Delírio que tem levado milhares de jovens – desesperados, marginalizados, excluídos, tudo isso é verdadeiro! – ao delírio ainda maior de fazer surgir esse mundo impondo-o pela via da força bruta, das armas, da morte. Aliás, delírio que somente vai às suas últimas consequências por outro delírio: aquele produzido pelas drogas que seus militantes utilizam em suas ações: heroína, ópio, cocaína, LSD, como já se sabe.
Assim, há que se evitar cair em tergiversações e enganos. Não se trata, pois, de substituir a crítica ao terrorismo das religiões, nas suas diversas formas, por uma pretendida preocupação com as atitudes de “cristianismofobia”, “islamofobia”, “judaismofobia”, pois o problema não está aí: o problema esteve sempre e permanecerá sempre enquanto as religiões pretenderem impor suas crenças particularistas a todos os demais na sociedade, e mais ainda quando isso for buscado pela via do terrorismo assassino. Se agora isso se apresenta na forma das ações do DAESH, pois seja ele o alvo de todos os combates para eliminar suas ações! E isso não é islamofobia!
É por essa razão que, aos ateus e agnósticos, mas a todos os demais, enfim, cabe condenar os atos terroristas – ideológicos ou dos assassinatos e atentados – de todas as religiões, quaisquer que sejam. A grande mentira de todas as religiões é pretender fazer crer que desejam unicamente o bem, a paz e a salvação de todos, quando o fazem desde que “todos” aceitem a sujeição às suas crenças e, para algumas delas, apenas às suas crenças. Como escreveu o filósofo francês André Comte-Sponville, “o bem não precisa de Deus” e “pode-se ter profunda espiritualidade sem religião”.