Há cerca de 16 anos tive o primeiro contato com a causa animal; isso ocorreu através do documentário “Earthlings”. Para quem não conhece, basicamente é a exibição sem cortes (de vídeo, claro) da produção de carne em larga escala. Desde a criação até chegar nas prateleiras do supermercado, enfatizando bastante a parte do abate. Marretadas, tiros, retiradas de pele e outros órgãos que não são vendidos. Depois de um tempo, já vegetariano, assisti “A Carne é Fraca”. Apesar de ser um pouco ameno em relação ao “Earthlings”, eu achei mais impactante, pois é produção nacional, ou seja, é a nossa realidade.
Ambos documentários tem um viés emocional bastante pesado e não são tão enfáticos aos impactos externos e secundários da produção de carne. Não que eu ache (totalmente) errado, afinal, foi por conta deles que eu construí minha visão de mundo sobre o tema. Porém, esse discurso emocional, com palavras fortes e vídeos impactantes me lembra a dualidade do pensamento messianismo x fatalista.
Quando agimos por emoção, através da tragédia, ficamos sensibilizados e passamos a refletir sobre o assunto. Com a causa animal, acabamos por parar de comer carne e viramos ativistas. O ativismo, neste caso, inicia quando passamos a “evangelizar” (sim, isso mesmo) as pessoas ao nosso redor. Julgamentos, condenações, coação psicológica faz parte da tática. Nesse momento é que surge o pensamento messianismo: NÓS PODEMOS SALVAR OS ANIMAIS.
Algumas pessoas poderão aderir, outras não. Independentemente de adesão ou não, ambas posições serão resultado da emoção. Se por um lado há aquelas que aderem e, assim, perpetuam o discurso emocional (dogmático?), por outro, aquelas que não aderem terão um comportamento fatalista. Em outras palavras, não somente acharão que a mudança de hábitos de nada adiantará, como também passarão a condenar quem o faz. Isso sem contar que, muitas pessoas que adotam esse discurso emocional não fazem uma preparação para a adaptação do próprio corpo a dieta vegetariana ou mesmo a vegana. Acham que o corpo está preparado para cortar determinados alimentos de uma hora para a outra. Não é de se estranhar quadros de anemia ou mesmo desnutrição. A falta de informação e de acompanhamento de um/uma profissional em nutrição contribui também para a visão fatalista.
Como disse antes, a visão do messianismo do veganismo carece de racionalidade. O discurso fica vazio cientificamente e, por isso, perde o sentido. Para mim, faltava uma discussão econômica, ambiental e política. O lado político, na verdade, está intrínseco aos lados econômico e ambiental. Começarei com o lado econômico.
Uma das maiores críticas ao veganismo é que é uma “revolução burguesa”. Ora, é até compreensível que esse pensamento, uma vez que, nós que pertencemos a classe média, média/alta ou alta, temos tempo para prepararmos nosso alimento ou temos poder aquisitivo suficiente se quisermos depender somente de restaurantes. Em relação ao tempo, as pessoas das classes populares estão ocupadas demais com trabalho e estudo, além de perderem muito tempo para deslocamento por conta da precariedade do transporte público. Essas pessoas acabam se alimentando de “comida de rua” e, em seu tempo livre, não vão “perder tempo” procurando receitas ou se preocupando com a qualidade da comida. Na questão de qualidade (e quantidade) de comida, se formos analisar a formação histórica dessas famílias, notaremos quadros de desnutrição ou subnutrição, ou seja, pessoas que passaram fome e que, por isso, “comem o que tem”. Selecionar comida é quase um pecado mortal.
Pelo lado ambiental, tendemos a achar que a causa animal se limita somente a morte dos animais. Ignoramos todo o processo e as consequências indiretas, como florestas devastadas para a plantação de soja; a soja transgênica; consumo excessivo de recursos hídricos; poluição do solo, ar e dos oceanos; contaminação dos oceanos; pesca predatória; pesca by-catch; para citar os mais recorrentes. O pior disso tudo é que, por não termos consciência do nosso papel ambiental, perdemos uma ótima oportunidade de expandir nossos conhecimentos e alertar sobre a causa animal e ambiental que estão interligadas – e, assim, diminuir nossos impactos (pegada ecológica). Para esse caso específico entre as causas ambiental e animal, recomendo fortemente que assistam o documentário “Cowspiracy”. Esta recente produção desmistifica as campanhas ambientais arquitetadas por grandes ONGs mundiais que ignoram a produção animal como fator altamente poluente e que necessita muito de recursos naturais. Até falaria o porquê de ignorarem, mas aí estaria dando spoiler. Assistam!
Perceberam que o lado político, como disse antes, está intrínseco ao lado econômico e ambiental? Pois é, somente podemos perceber essas relações quando temos embasamento político que sustentem nossa posição. Para isso acontecer, devemos sempre desconfiar de discursos fatalistas e messianismo, porque só assim poderemos ir além do ativismo emocional. E isso não vale somente à causa animal, mas com toda nossa realidade.
- “Ah, político é tudo ladrão”;
- “Ah, os animais vão morrer do mesmo jeito, então vou comer carne”;
- “Ah, vou aproveitar enquanto ainda tem água e lavar meu carro”
- “Ah, …”
…
Referências:
- “Earthlings” (legendado em português);
- “A Carne é Fraca” ;
- “Cowspiracy”;
- IAMAMOTO, M. V. Dilemas e Falsos Dilemas no Serviço Social. Prática social: a ultrapassagem do fatalismo e do messianismo na prática profissional. In: IAMAMOTO, M. V. Renovação e Conservadorismo no Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2013. p. 133 – 139