Diariamente nos noticiários, nas conversas entre amigos, nos sermões familiares, em nossos pensamentos, ecoa unânime uma mesma preocupação: a violência. Uma pesquisa realizada esse ano pelo Datafolha revela que o maior medo entre os jovens brasileiros é a morte de parentes. Mas afinal, devemos temer a violência? Somos seres violentos?
Talvez eruditos de outros séculos definam que a maior paranoia de nosso tempo seja a crença de que os seres humanos são animais essencialmente violentos. As pessoas, mesmo as mais individualistas, em geral, não são assassinos naturais, com exceção de uma ínfima minoria de sociopatas e psicopatas que geralmente não assumem o estereótipo que atribuímos à pessoas com essa patologia. Pode não parecer, mas em geral somos animais pacíficos, sociáveis, na grande maioria avessos à violência, ao menos quando não somos influenciados por algum grupo ou fator social de subsistência, além claro de grandes traumas ou problemas psiquiátricos. E apesar do noticiário parecer afirmar o contrário, há proporcionalmente menos mortes por guerras e genocídios hoje em dia do que em qualquer outro período da história.
O século passado, marcado por um acelerado processo de urbanização da população, e o consequente isolamento com a natureza, além de grandes guerras e genocídios, contribuiu para que a visão de Hobbes sobre o homem e a natureza exemplificada pela máxima “o homem é o lobo do homem”, até então restrita aos acadêmicos e intelectuais, adquirisse maior capilaridade entre a maioria da população. Para o sociólogo americano Donald Pierson as maiores atrocidades “são geralmente iniciadas por tipos de personalidade muito autocontroladas, em posições de segundos-em-comando, e não por tipos de personalidade sem autocontrole”. Pessoas que eventualmente se envolvem em brigas de trânsito ou em casos de violência doméstica são menos perigosas do que aquelas em uma posição de dar ordens, Pierson as denomina de “segundos-em-comando”, como por exemplo aquelas que agem no contexto da guerra de facções criminosas, ou policiais incentivados por seus superiores a cometer execuções ou vingar-se de um companheiro morto. A violência passional é menos danosa do que a violência estatal ou institucional, ou ainda aquela cometida em nome de um grupo ou religião. Guerras e genocídios ocorrem quando as pessoas são convencidas a matar sob ordens, ou são induzidas a isso quando agem em bando, pois encaram a agressão como legítima defesa.
Hannah Arendt nos lembra que os funcionários dos campos de concentração nazistas eram pessoas normais, não eram monstros, aberrações. Eram pessoas que acreditavam – por mais macabro que pareça – estarem apenas cumprindo o seu dever. O que ela definiu como “a banalidade do mal”.
O biólogo Desmond Morris afirma que o estilo de luta instintivo dos humanos foi aperfeiçoado para nos impedir de causar danos fatais ao adversário. Qualquer um que já viu uma briga de rua sabe que o estilo instintivo de luta consiste em empurrões e socos na área do tórax, ombros e cabeça, além de chutes na cintura e pernas, regiões repletas de ossos. Um método de luta pouco eficiente se comparado aos golpes fatais desferidos por um artista marcial – que aprendeu pela técnica a domar o instinto – focados nos tecidos moles, que podem facilmente matar um adversário que não seja treinado. Constatando que naturalmente não fomos feitos para matar nossos adversários, mesmo em lutas passionais. O que não acontece quando o indivíduo porta uma arma de fogo que hoje corresponde a 95% dos homicídios no país.
Geralmente precisamos culpar algo para consolar-se de nossos erros. Culpar uma entidade metafísica denominada “violência” que permeia e corrói todo o tecido social é um meio confortável de enfrentar os dilemas impostos pela urbanização, já que essa entidade explica por si só os índices de criminalidade que assolam os grandes centros urbanos brasileiros. É culpa da violência e ponto. Durante milênios nossa sociedade foi organizada em pequenos clãs e aldeias. Viver em grandes densidades populacionais é um comportamento antinatural para os humanos, precisamos aprender a lidar com isso. Desconsidera-se que uma maior percepção da criminalidade é consequência de um contexto maior, fruto, entre outros fatores, de uma urbanização acentuada e mal planejada, além da super exposição na mídia de casos isolados de extrema violência. Qualquer animal quando colocado em uma situação estressante de superpopulação e subsistência terá aflorado seus instintos mais violentos – a violência é uma forma eficaz de auto defesa em um ambiente hostil. Qualquer pesquisador sabe que condições de superpopulação e stress podem enlouquecer qualquer cobaia, tornando-as muitas vezes agressivas com seus pares, não apenas em laboratórios, mas em seus próprios habitats naturais. Coloca-se a culpa no indivíduo, não nas circunstâncias, por ser este o meio mais cômodo de resolver o problema.
Precisamos encarar a violência como um problema social, mais do que moral, a ascensão da criminalidade no país está atrelada ao mal planejamento dos grandes centros urbanos, inflados nas últimas décadas em um acelerado processo de urbanização, criando nichos de pobreza, além de uma fracassada política de guerra as drogas que alimenta facções criminosas e incentiva a violência e corrupção policial nesses locais. É óbvio que bolsões de miséria nas periferias dos grandes centros urbanos não justificam por si só a violência e a criminalidade, seus moradores em sua maioria continuam avessos à violência e a prática de crimes, no entanto, é certo que o alto índice de criminalidade nessas regiões está atrelado às condições precárias de seus habitantes, fazendo com que uma minoria de jovens carentes de perspectivas recorram à violência e a criminalidade como meio de escape. Em locais onde o setor público e o setor privado não chegam, restam aos demais a economia informal como única opção legal para subsistência, já para uma minoria, pequenos crimes ou o crime organizado é a única saída que enxergam. O que não significa que sejam vítimas e nem precisem ser punidos, mas que o combate a criminalidade deve se dá de modo estrutural, combatendo às causas, não somente punindo indivíduos. Mais prisões ou mortes de criminosos não resolverão por si só o problema. É necessário que o poder público e o setor privado – formal – atuem nessas regiões.
Segundo Eric Raymond, “menos de 0,5% da população já matou alguém em tempos de paz. Assassinatos são executados geralmente por homens entre as idades de 15 e 25, e a imensa maioria desses por homens solteiros. As chances de uma pessoa ser morta por um humano fora dessa faixa demográfica são comparáveis às chances dela ser morta por um raio”. É um erro, portanto, acreditar que a violência espalha-se de modo endêmico pelo corpo social, ela está confinada em um certo nicho populacional e em certas circunstâncias. Os humanos são primatas extremamente sociáveis, a evolução nos dotou de poderosos instintos sociais, um deles é a nossa predisposição em obedecer ao líder da tribo ou outros machos dominantes, que em situações cotidianas podem ser o chefe de uma facção criminosa, gangues, ou corporações estatais. Esse comportamento era especialmente importante para manter sob controle os machos solteiros da tribo de idade entre 15 e 25 anos, que precisavam ser agressivos contra aqueles de fora da tribo e dóceis com os que a compunham. Não é à toa que reside nessa faixa os maiores índices de violência, em grande parte membros de gangues, facções ou quadrilhas organizadas.
Entretanto, precisamos considerar que a possibilidade de sofrermos algum tipo de violência em espaços públicos existe, e que a taxa de assassinatos por arma de fogo cresceu no país nos últimos 30 anos, passando de 7,3 para 21,9 mortes a cada 100 mil habitantes, crescimento de 198,8%; mas esse crescimento é localizado na faixa etária que Eric Raymond denuncia como vulneráveis a cometer e sofrer violência, a taxa entre os jovens sobre para 47,6 homicídios por 100 mil habitantes de acordo com o Mapa da violência, atualizado até 2012. Além do crescimento acelerado entre os jovens, há um grupo de risco composto por jovens que habitam as periferias dos grandes centros, quando envolvidos com facções criminosas que disputam pontos de venda de drogas. O que reforça a tese de Raymond de que as pessoas se tornam violentas quando estão agindo em nome de grupos ou obedecendo ordens diretas ou indiretas. A guerra as drogas empreendida como política estatal em todo o mundo nas últimas décadas é outro fator responsável por esse aumento, fortalecendo facções criminosas e respaldando a ação violenta do estado em regiões periféricas, reforçando o sentimento de bando do “nós contra eles”.
Devemos ter consciência dos riscos inerentes, principalmente quando se faz parte da faixa populacional mais exposta a sofrer violência e quando se frequenta lugares onde a criminalidade é endêmica, no entanto, é um erro acreditar que vivemos em uma sociedade onde todos estão sempre a espreita de cometer um ato violento quando se tem a oportunidade, principalmente em regiões carentes, onde em sua maioria as pessoas continuam pacíficas.
O medo desmedido, fantasioso, pela iminência da violência do outro, nos afasta dos espaços públicos, nos enclausura – quando assim podemos – em fortalezas habitacionais, em carros, parafernálias eletrônicas, ambientes e jogos virtuais, o que torna os espaços públicos ainda mais violentos. Aquele que enxerga em qualquer estranho uma ameaça em potencial, está disposto a abrir mão de qualquer coisa para ser protegido. Inclusive sua liberdade. Uma sociedade acuada pelo medo da violência propicia as condições necessárias para que uma violência estatal, normativa, até privada, se efetive em uma escala infinitamente maior do que alguns casos isolados. O medo irrefletido da violência só gera mais violência.