Alipio de Sousa Filho (Sociólogo, Cientista social, professor da UFRN)
O país vive, nos dias atuais, um surto de ignorância conservadora que se pode constatar na produção de cretinices, por conservadores e reacionários, nas formas de ideias, propagandas e campanhas sobre diversos assuntos da vida pública e do âmbito da vida privada.
Nos últimos anos, pessoas com posicionamentos políticos e morais conservadores e reacionários, com a forte contribuição de correntes religiosas católicas e evangélicas, deliram com as seguintes teses: a ala do governo federal constituída pelo PT, o que inclui a presidente da República, tenta realizar o que acreditam ser uma “revolução bolivariana” no país, tenta implantar o “comunismo” e já impôs uma “doutrinação ideológica” nas escolas para a “imposição de valores contrários à propriedade privada, à tradição e à família, desvirtuando a boa educação que a família cristã brasileira oferece aos seus amados filhos” – qualquer semelhança com a TFP não é mera coincidência. É isso que chamo o delírio conservador no Brasil. Dizer que é um delírio não significa que o tomo por irreal, bem ao contrário, está aí na realidade cotidiana e atuante, suas ideias é que são delirantes, verdadeiras alucinações.
Ora, o que o governo federal, às vezes em sintonia com governos estaduais e municipais, vem buscando construir no país não é “revolução bolivariana”, “comunismo” nem “doutrinação ideológica” sobre o que quer que seja. Não é mais que uma tentativa de implementar, aos trancos e barrancos, políticas públicas do Estado de Bem-Estar social no país, muito atrasadamente na história, com programas e políticas governamentais que em diferentes partes do mundo já vigoram como consensos sociais há várias décadas – e cujos fracassos mais recentes, em alguns países, têm feito neles surgir concepções e atitudes xenófobas, racistas, discriminatórias e que estimulam a segregação social. É também uma tentativa de tornar possível a existência, no Brasil, de um Estado laico, secularista, liberal e democrático, isto é, moderno, que suspenda toda fundamentação de seus atos a partir de pontos de vistas religiosos, valorações culturais e morais e práticas de atividade econômica que representem atentados contra à igualdade de direitos de todas as pessoas e ao reconhecimento social e jurídico de todas elas. Ainda, o que se procura nas políticas governamentais recentes no nosso país nada mais é que uma tentativa de fazer que, no Brasil, a cidadania deixe de ser, como denunciou a filósofa Marilena Chauí, “um privilégio de classe”. Um “ideal de civilidade”, como assim nomearam os filósofos John Rawls e Jurgen Habermas, que, no Ocidente moderno, persegue-se a pelo menos dois séculos, mas que, no Brasil, a ignorância conservadora de muitos faz pensar que se trata de uma “revolução” que começou na Venezuela e que o PT quer arrastar para o país.
Mas, país habituado à figura do “senhor-cidadão”, como também denunciou Chauí, herança da sociedade escravista que nos fundou e permanece como modelo para boa parcela da população, “sociedade de natureza autoritária” (citando ainda M. Chauí), aqui, o Estado de Bem-Estar social, liberal e democrático moderno, por mínimo que ainda seja, é visto por muitos, gente conservadora e reacionária, em sua assombrosa ignorância, como políticas de “privilégios”. Diariamente, é possível ouvir pessoas falando de direitos de trabalhadores como concessões que permitiriam cobranças autoritárias de “comportamento”: como se o direito existisse para alavancar novas subordinações e não para a promoção da cidadania de todos. Que se leia a entrevista da presidente do Sindicato dos Empregadores Domésticos do Estado de São Paulo, que, recentemente, ao falar dos novos direitos dos empregados domésticos, assim se manifesta: “Tenho medo de como caminhará em uns anos, porque hoje ninguém respeita ninguém”. E arremata: “cada pessoa precisa saber o seu lugar”.
Vivemos no país em que o conceito de direitos humanos e políticas de direitos humanos foram transformados em estranho ente, sem igual em outras partes. Explica-se assim que se diga: “os direitos humanos somente defendem bandidos” ou os “direitos humanos nunca pensam nas famílias das vítimas”. Nessas expressões, temos um caso em que a predicação do sujeito oracional transforma um conceito abstrato em agente vivo, em substância agente, corporificando algo de sentido conceitual em atores, personagens, instituições, e para seu desprestígio. Frases que são também ecos de um pensamento expresso no dito “bandido bom é bandido morto” – algo saído das cavernas do obscurantismo e da estupidez produzidos no país, mas repetido até por governantes, parlamentares, juízes e por policiais, estes últimos mais que todos.
A alucinação ideológica conservadora e homofóbica cria a “ideologia de gênero”
O delírio conservador produziu também uma alucinação à parte: a bizarra invenção segundo a qual anda em curso no país a difusão de uma “ideologia de gênero”, como dizem!, ainda que conservadores e reacionários de todas as colorações nem mesmo saibam do que estão falando: nem o que é gênero e menos ainda o que é ideologia!
Prova disso pude testemunhar com minha participação recente na Audiência Pública sobre o tema, realizada pela Câmara Municipal de Natal. Nela, estavam pessoas dispostas a falar, sem o menor pudor, tudo o que de mais atrasado e ignorante pode ser dito sobre o assunto: opiniões de senso comum, preconceitos e agressões à dignidade de gays, lésbicas e trans (e também à dignidade de mulheres), acusados de ser responsáveis pela criação da tal “ideologia de gênero”. E tudo pronunciado com ressentimento, uma vez que o delírio faz crer que o Estado, através dos governantes atuais, “abandonou a família brasileira, cristã, que está sendo atacada e ameaçada nas escolas brasileiras, por orientação do MEC, por uma minoria de professores, intelectuais e acadêmicos que querem desvirtuar a educação moral que as famílias dão aos seus filhos”, por pretender impor uma “ditadura gay” no país e impor uma “ideologia” (sic.) contrária às “leis de Deus” e às “leis da Natureza” que “fizeram o homem para a mulher”, “biologicamente definidos nos seus gêneros e sexualidade” e que “a escola não pode pretender alterar”.
Na audiência, ouvi outras tantas tolices e rosários de vitupérios ignorantes, ditos por pessoas que nem mesmo sabem que não sabem. Nem mesmo o advogado que esteve ali como representante da OAB/RN deixou de manifestar seus preconceitos e posicionamentos conservadores, mas igualmente revelando seu desconhecimento quanto aos estudos da antropologia, sociologia, psicologia e história sobre sexualidade e gênero, domínios das ciências humanas com mais de um século de produção sobre o assunto. Aliás, diga-se aqui, seus posicionamentos não expressaram os da OAB, entidade que tem a desembargadora aposentada e advogada Maria Berenice Dias como Presidente da Comissão da Diversidade Sexual do Conselho Federal da OAB nacional, que tem lutado no campo jurídico pela institucionalização dos direitos gays. Com a palavra a OAB/RN para dizer qual seu efetivo posicionamento sobre o assunto, uma vez que não é crível que seja aquele expresso pelo advogado que a representou na audiência pública. Para conferir, é só ver, em filmagem realizada pela TV Câmara, tudo o que ali se disse.
Mas vamos ao principal: “ideologia de gênero” é o que os setores religiosos fundamentalistas e conservadores do país praticam e pretendem preservar. Especificamente para o assunto em destaque, primeiro, na infância; depois, na vida juvenil e adulta, nas famílias, a ideologia do binarismo homem/mulher e das normas de gênero chegam através das ideias heteronormativos, masculinistas, machistas, sexistas e homofóbicos. Em seguida, nas escolas, que, salvo raríssimas exceções, são reprodutoras desses mesmos modelos sociais. As mídias, em geral, prolongam a sua difusão e internalização, e as igrejas, na abordagem do sexo e do prazer, completam o assédio moral e psicológico do discurso ideológico.
Não são professores, nas escolas ou nas universidades, que praticam a “ideologia de gênero”, mas as mídias, as igrejas, as famílias, os discursos moral, religioso e político, ao difundirem ideias que negam o caráter construído de toda realidade e, por isso mesmo, o caráter revogável de todas as instituições sociais existentes, no que se inclui também as noções de gênero sexual, identidade de gênero, sexo, sexualidade. Tentando fazer crer a todos que a realidade dos gêneros e a realidade do desejo e das práticas sexuais são de natureza natural, como diria o sociólogo Pierre Bourdieu, o discurso ideológico e seus cães de guarda procuram negar que o ser humano é, de alto a baixo, uma construção cultural, social e histórica, tanto quanto ele é capaz de realizar modificações, transformações, não tendo nada que o obrigue a permanecer o mesmo, ainda toda a força da socialização, pois, diferentemente dos animais, somos uma espécie sem direção e especialização biológicas fixas e prévias, o que nos permite construir e reconstruir a nós mesmos.
É assim que, em sexo e em construções do gênero, podemos ser tão variáveis e realizar opções que nada têm a ver com conformações anatômicas, morfológicas e fisiológicas, tidas erradamente por, em si mesmas, definidoras de desejos e práticas, ideologicamente representados como “naturais”. Quando são da ordem de escolhas libidinais que se tornam a “causa” da “política do desejo” de cada um, tornando-se a potência que engaja cada um na construção de sua autonomia erótica e identificações de gênero. Conservadores, reacionários e fundamentalistas religiosos morrerão com seus delírios mas não virão jamais fenecer a “causa” do desejo e o que ela é capaz de criar, subverter, transformar, ainda que permaneçam todas as suas vãs tentativas de governar os indivíduos.
As pesquisas conduzidas por todos nós que nos ocupamos com os estudos de gênero e sexualidade apoiam-se nas regras da produção do conhecimento científico e em dados empíricos, dados da vida social, dados da vida. Como nos ensinou Nietzsche: “a vida veio antes da moral” e, portanto, não seremos negadores da vida e suas expressões, subordinando-a a questionáveis morais e a refutáveis crenças sem fundamento. Sabotar o conhecimento produzido pelas ciências humanas sobre gênero e sexualidade, impedir que ele chegue às escolas e negá-lo às crianças e jovens são atos de sabotagem de vidas, da vida. De vidas de muitos adolescentes e jovens que experimentam, cotidianamente, a violência da humilhação, da discriminação, do bullying, sem muitas vezes não terem a quem recorrer. Uma realidade que se prolonga nos assassinatos de mulheres, nas agressões homofóbicas, nas discriminação e violência contra transexuais.
O assédio moral e ideológico que as escolas, os professores e os planos de educação vêm sofrendo no país merecem considerações de procuradores e promotores federais, estaduais e municipais, pois bem podem ser tratados como ingerências indevidas e ameaçadoras à promoção da educação e do progresso cultural da sociedade brasileira, de suas crianças e seus jovens.
Professores, pesquisadores e intelectuais de todo o país, uni-vos! É tempo de rebelião! Às barricas, com canetas e livros nas mãos! Conservadores, reacionários e fundamentalistas religiosos não passarão!