Caro Moço Dentuço Do Sovaco Suado Que Trabalha Na Construção do Prédio Próximo à Minha Academia,
Como anda a vida? Muita argamassa pra misturar? É provável que você não me reconheça logo de cara (talvez pelo volume dos seios que você tanto analisa, sim), mas deixa eu me apresentar:
Eu não sou sua “gatinha”. Também não sou sua “princesa” e nem muito menos sua “hummmmmmmshhhhhhh delícia”. Na real e sou só a moça que corre na avenida sempre de casaco preto e calça legging… Lembra de mim? Essa semana você falou que “com uma bunda dessas cê tá malhando errado minha filha” e que “venha cá preu lhe dar umas aulinhas” (inclusive, muito obrigada pela gentileza, você é formado em Educação Física?). Espero que me reconheça, afinal palavras tão cavalheiras como essas não se dirigem à qualquer um/uma, é sempre algo extremamente seleto.
Ah, se você ainda assim estiver confuso quanto a minha identidade, o seu colega de trabalho – aquele que usa sempre a mesma bermuda do América F.C. e um chinelo Ipanema branco-desbotado – me chamou de “Raimunda” um certo dia (eu supus que não era uma alusão ao fato de eu ser “feia de cara e boa de bunda”, mas uma certeira confusão entre mim e alguma amiga homônima a qual ele sente bastante saudade), vocês riram muito, parece que foi engraçado, mas eu não sou ela…
Estou utilizando esse espaço que a Carta sempre me dá às terças-feiras, para escrever essa mensagem pra você, já que tentei lhe contactar através do seu chefe mas ele negou a existência de funcionários que agissem de forma tão grotesca e machista na empresa e não deu ouvidos ao que poderia ser uma queixa/frescurite feminista… Mas fica tranquilo, isso não é uma reclamação indignada e nem você é grotesco. Eu não disse isso, tá? Foi ele, não fui eu, foi ele. Eu sou bem deboas. Aqui quero só me justificar e te fazer um convite.
Pois bem, essa semana eu estava correndo com os fones de ouvido ligados num volume mais alto do que o normal mas consegui escutar um grunhido de reprovação emitido por você do alto do andaime – provavelmente porque eu não retribuí sorrindo aos seus “fiu-fius” ou olhares invasivos ou agradeci pelo Assédio Nosso de Cada Dia. Menino, é que é tanta besteira pra fazer nessa minha vida que eu até esqueço do que realmente importa, cê acredita? Na maioria das vezes eu tô pensando na quantidade de horas que eu vou ter que deixar de dormir pra poder fazer um projeto profissional bem bom e, sucessivamente, conseguir ser respeitada e elogiada (ganhando, é claro, bem menos destaque e grana que meus colegas homens)… Ou é isso ou eu tô ocupada demais me sentindo violada também pelos seus amigos, que param o que estão fazendo para serem hostis enquanto boa parte da sociedade maquia tal hostilidade com “é só tesão de homem porque homem é assim”. Das duas, uma.
Peço encarecidamente que me perdoe pela desatenção.
Sábado tenho um espetáculo em cartaz e, se for do seu interesse, lhe consigo ingressos para que vá com o amigo da Raimunda (diminuiria nossa dívida?). Não haverão mulheres correndo com roupas justas e pedindo silenciosamente – assim como eu – para serem desrespeitadas por homens como você. Talvez umas sirigaitas dessas desquitadas ou mães solteiras ou abortistas, mas acho que seria legal a sua presença… Finalmente eu experimentaria a possibilidade de ter uma platéia mais selvagem, mais primata! Viva la diversidad!
Então é isso. Não esquece de me responder, tá?
Gente como você eu gosto de tratar bem e ter juntinho do coração – água mole em laje dura, um dia causa infiltração.
Paz, amor e cimento.
Atenciosamente,
Alice.