Por Lara Rossini
O ser humano não nasceu pra ser sozinho. Carregamos, em nossa genética herdada dos nossos ancestrais, a necessidade de formar família, casar e ter filhos. Na era pré-histórica já era comum que os hominídeos se juntassem em bando para se protegerem de possíveis ataques de animais selvagens, do frio e da fome. Era ritualístico sentar em frente a fogueira para fazer suas “refeições”. Neste período começou a se estabelecer e separar o papel e as atividades desempenhadas por homens e mulheres. Estes já procriavam e formavam famílias.
A fuga da solidão é algo que está imbuído intrinsecamente em nosso inconsciente. Na procura incansável e desenfreada para encontrarmos a nossa “metade da laranja”, corremos o risco de encontrar uma metade podre, mofada, passada do ponto ou, pior, de querer, desejar e aceitar a todo custo essa metade enferma – ainda que isso nos custe a nossa paz ou mesmo a nossa própria vida.
A paixão, o medo, a insegurança e a fragilidade podem nos levar, principalmente, a nós mulheres, a um caminho muitas vezes só de ida, sem volta e a nos submetermos a qualquer tipo de relacionamento, sejam eles abusivos, violentos e degradantes. Na vontade e pressa em sermos amadas, constituirmos uma família e de nos sentirmos aceitas e inseridas socialmente entregamos nossas vidas nas mãos daquele que pode ser nosso próprio assassino. Fechamos os olhos aos sinais de abuso, apanhamos caladas, ouvimos humilhações diariamente, somos estilhaçadas emocionalmente.
Por paixão, por medo ou até por acreditarmos que o objeto do nosso amor poderá mudar um dia, nos submetemos a um cárcere emocional diário. Além de sermos servas, vítimas desses algozes, somos vítimas de nós mesmas, pela falta de coragem de romper a relação ou de denunciar o respectivo cônjuge agressor. Agressor não é somente aquele que deixa marcas físicas em nosso corpo, mas também aquele que nos agride veladamente, longe do olhar da sociedade, aquele que disfarçadamente destrói a nossa autoestima e desconstrói nossa autoimagem. Agressor é aquele que tira a vida da sua parceira, que lhe rouba o direito da escolha dela estar viva, porque este, simplesmente, não aceita que ela tenha deixado de amá-lo ou que tenha escolhido estar com outra pessoa.
O agressor também é aquele que se faz de vítima, quando na verdade ele é um grande e habilidoso manipulador. É o tipo de homem inteligente e sedutor, capaz de machucar e fazer com que sua parceira acredite que a culpa sempre é dela. Em outras palavras, além de apanhar ou de ser molestada psicologicamente, a mulher carrega a culpa do seu companheiro de maltratá-la. E os motivos são os mais toscos, variados e irrelevantes possíveis, desde a ir cinema com uma amiga ou cumprimentar um amigo do sexo masculino que não via há tempos.
Tudo beira a paranoia, a loucura a insensatez. O menor gesto de mulher, é capaz de despertar o monstro adormecido. No auge da crise eles prometem que vão mudar, se fazem de bonzinhos. A farsa dura até o próximo ataque. Muitas vezes, este homem vende uma imagem maravilhosa perante a sociedade, podendo fazer o tipo popular, simpático e calmo, surpreendendo a todos quando é “descoberto”. Não raramente, quando assistimos aos jornais e TV as pessoas se mostram altamente surpresas e incrédulas quando se deparam com a verdadeira face do agressor. É comum se ouvir nas entrevistas e depoimentos: “Nós nunca esperávamos isso de fulano, ele aparentava ser tão calmo. Era tão dócil, cumprimentava a todos na rua. Não sei o que pode ter acontecido que fez com que ele perdesse a cabeça assim. Nós lamentamos muitos. Estamos todos em estado de choque”.
Por comodidade fechamos os olhos para a violência doméstica. Por ser mais fácil e menos desgastante preferimos optar por nos abster ou não nos envolvermos diante dessas situações. Eu perdi uma amiga muito especial e sei que muita gente já perdeu ou vai perder outra amiga dessa maneira. O que mais me dói é que eu não consegui salvá-la dela mesma. Como tirar alguém da prisão que ela escolheu estar ou pelos seus próprios motivos não conseguiu sair?
Como ser humano e psicóloga, meu objetivo com este desabafo é alertar a todas nós, mulheres, do risco que estamos correndo a qualquer momento. Preciso chamar atenção para que nós aprendamos a nos defender e cuidarmos sozinhas. Ao menor sinal de comportamento suspeito abandonem essa relação, antes que se envolva ainda mais. Este é o meu grito de dor e foi a única maneira que encontrei de honrar a memória da minha amiga falecida.
Muita gente não vai ler isso ou vai ler e ignorar, mas, como amiga, senti a necessidade de compartilhar com vocês e de lutar por um mundo justo, na qual as pessoas possam estar num relacionamento e não numa prisão. E é neste sentido que o título se faz necessário. Quando ignoramos uma situação, nos tornamos cúmplices de um crime; por isso, é para meter a colher sim.
“Sei que meu trabalho é uma gota no oceano, mas sem ele, o oceano seria menor.”
(Madre Teresa de Calcutá)
Uma parte de mim morreu junto a você, Kênnia.