Por José Castello (O Globo)
Leio em “Monsieur Teste”, livro do genial Paul Valéry relançado, em edição ampliada, no ano de 1946, um ano após a morte do escritor: “Enfastiado de ter razão, de fazer o que tem sucesso, da eficiência dos procedimentos, tentar outra coisa”. Na metade do século passado, Valéry ataca, assim, alguns dos valores mais divinizados em nosso século 21: o império da razão, a necessidade do sucesso a qualquer preço, o endeusamento da eficiência e do desempenho. A idolatria da vitória. Não vacila: diz. Não se poupa: expõe-se. Foi também um crítico de grande coragem intelectual.
Em “Monsieur Teste”, um dos livros mais importantes de Valéry (1871-1945), o filósofo se dedica a pensar o pensamento. Seu objeto não é o mundo, não está interessado em refletir a respeito das coisas a seu redor. Interessa-se, apenas, por sua própria maneira de pensar. Na edição ampliada que tenho nas mãos, estão incluídos fragmentos e anotações que Valéry pretendia acrescentar a seu livro, originalmente publicado no ano de 1896. Faleceu antes de fazer isso. As fortes ideias do pensador francês me chegam através de uma edição brasileira, publicada pela Ática, com tradução de Cristina Murachco, em 1997.
Continuo a seguir as pegadas de Paul Valéry. Para se defender de acusações injustas e de preconceitos intelectuais, ele se apressa em fazer, em um dos fragmentos póstumos, uma defesa enfática da “aberração”. Lamenta que a palavra seja usada, quase sempre, de forma negativa, como “um afastamento da norma que vai na direção do pior”. Lembra, ao contrário, que, em alguns ramos da ciência, a mesma palavra pode designar “algum excesso de vitalidade, uma espécie de transbordamento do energia interna, que leva a uma produção anormalmente desenvolvida de órgãos ou de atividade física ou psíquica”. Faz assim a defesa do “homem observado, vigiado, espiado por suas ideias, de memória”. Faz uma defesa de si mesmo, não para elevar-se, mas, ao contrário, para se expor.
A aberração escapa da vigilância e, em consequência, abre portas para mundos antes desconhecidos. Abre portas para o próprio homem. Deveria, por isso mesmo,interessar positivamente os cientistas. Lembra então Valéry que, até a adolescência, seu personagem Monsieu Teste _ pois o livro mescla ensaio e ficção _ “absolutamente não desconfiava da singularidade de sua mente”. Ao contrário: “Achava-se mais tolo e mais fraco do que a maioria”. Em Teste, o que parece fraqueza _ o que é fraqueza _ é valor. É na derrota que ele se ampara para ser.
Passa então à enumeração de alguns dos pensamentos de Teste. “Deve-se entrar em si mesmo armado até os dentes”, pensava Monsieu Teste. A suspeita contra si, apesar do simultâneo acolhimento de si, deve prevalescer. Ao entrar em si (ao examinar-se), o sujeito deve “criar uma espécie de angústia para resolvê-la”. É um grande escândalo fazer, em nosso mundo adestrado, a defesa da angústia e do tormento como instrumentos de saber. De novo, a imagem (falsa) do fracassado se cola a Valéry, mas ele não tem medo disso. Ao contrário: tranforma o obstáculo _ o fracasso _ em um valor positivo. Faz do fracasso não sua derrota, mas seu ponto de partida.
Nesse estado em que a angústia é essencial para o conhecimento, prossegue Valerý através de Teste, os sujeitos devem “considerar suas emoções como tolices, inutilidades, imbecilidades, imperfeições _ como o enjôo no mar, ou a vertigem nas alturas, que são humilhantes”. Ao contrário: devem suspeitar do que sentem em vez de glorificar os próprios sentimentos. “Desprezo o que sei _ o que posso”, ele escreve. O desprezo é, no fundo, um mecanismo de suspeita. E a suspeita, em vez de entorpecer, fortalece. Asuspeita, e não a retidão ou a eficiência, é a forma mais segura de pensamento. Mas como homenagear a suspeita em um mundo de pessoas “cheias de si”? Em um mundo no qual o brilho do Eu nos cega?
Prossegue Valéry com a voz de Teste: “Minha alma começa no ponto exato em que não enxergo mais, em que não posso mais nada _ onde meu espírito bloqueia a estrada para ele mesmo _ e voltando das maiores profundezas, olha com pena para o que a linha de sondagem marca”. Defesa enfática do obstáculo, da impossibilidade e do limite, o pensamento, mais uma vez, contrasta com um mundo fascinado pelos recordes, pelas altas das bolsas e pelo consumo desmesurado. Fascinado, sobretudo, pela precisão. Falhar é o grande pecado de nossos dias. Por essas e outras ideias, Paulo Valéry se torna, assim, um pensador essencial para o século em que vivemos.