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Sobre a demissão da professora Luíza e o ensino de filosofia no Brasil

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Está circulando pela internet a notícia da demissão da professora Luíza Coppieters, que fazia parte do Colégio Anglo, rede de escolas particulares de São Paulo. O motivo: transfobia. Luíza assumiu publicamente a transexualidade em 2013. Após o gesto, no entanto, foi perdendo o posto de coordenadora de debates e o direito de abordar sexualidade e gênero em suas aulas. Antes de ser demitida (por motivos estritamente profissionais, alega o coordenador da escola, que nega veementemente a acusação de Luíza), a professora viu seu salário ser diminuído em 70% e tentou suicídio por duas vezes.

Em tese, eu não deveria escrever a respeito de Luíza. Sendo uma mulher trans lésbica e eu, um homem cis hétero, existe entre mim e ela um notável fosso de gênero. Não devo entrar no tema da transexualidade em detalhes. Remeto as pessoas interessadas ao Transfeminismo, um (senão O) blog voltado para o ativismo de mulheres trans no Brasil. Lá vocês encontrarão todo o tipo de informação a respeito: o que é transexualidade, desafios enfrentados pelas mulheres trans (e pelas pessoas trans em geral), interseccionalidade com outras opressões e assim por diante.

luiza coppietersContudo, se não posso escrever sobre transexualidade, posso tranquilamente escrever sobre Luíza enquanto estudante e postulante a professor de filosofia. Durante cinco anos, Luíza cativou seus alunos pelo papel docente e pelo carinho com que os tratava antes mesmo da transição. Esses alunos, mais do que seus pais e os demais professores, acolheram a identidade trans de Luíza. Num país onde o ensino de filosofia é parco e precisa de muito trabalho para crescer em qualidade e visibilidade, o que Luíza fez não é pouca coisa. E posso traçar paralelos entre o ocorrido a Luíza, a filosofia e o ensino de filosofia.

O primeiro ponto a se observar é a declaração de Wagner Dias, coordenador do ensino médio no Colégio Anglo Leonardo da Vinci, sobre a demissão de Luíza (a entrevista pode ser vista no link acima sobre a professora). Após desmentir a professora, afirmando que ela aparentava estar bem com todos (professores, alunos, pais de alunos), que a escola estava elaborando um plano de acolhimento à condição de sua funcionária e que a instituição encoraja discussões sobre gênero e outras injustiças sociais, Wagner solta: “O curso ministrado pela professora deveria ser mantido incólume a qualquer questão de ordem pessoal.” Aí eu me pergunto: como Luíza poderia se eximir de discutir um tema que atravessa a existência dela? Alguém pode objetar que o coordenador se referia às tentativas de suicídio dela. A isso respondo que é muito suspeito – conivente, acrescentaria – pensar dessa maneira, dado o quadro favorável em que ela se encontrava antes da transição. E a eventual ambiguidade do trecho que citei se desmancha quando tomamos conhecimento da retirada dos temas de gênero e sexualidade nos planos de educação em oito Estados brasileiros, devido à pressão da bancada religiosa. Rogério Marinho propôs uma facécia ainda pior: punir professores por exercerem doutrinação ideológica em sala de aula. Em outras palavras, a declaração de Wagner Dias (e provavelmente do Colégio Anglo enquanto empresa) esconde a tradicional distinção entre público e privado tão cara ao pensamento conservador; ele deseja conciliar a postura crítica da professora com o veto à apresentação de “questões de ordem pessoal” (como a transexualidade tão cara a Luíza).

O segundo ponto é a marginalização do problema da sexualidade e gênero dentro da filosofia. Em que pese um Michel Foucault, uma Judith Butler, uma Simone de Beauvoir e um Jacques Derrida discorrendo a respeito, pouco se explora esse tema, mesmo dentro dos cursos superiores de filosofia. Ambiente falocêntrico, a filosofia canônica, quando não considera a diversidade de gênero e sexualidade, relega a segundo plano tudo que foge do binarismo masculino/feminino. Como exceção à regra, consideremos a formulação de Georges Bataille (que exerceu larga influência nos pensamentos de Foucault e Derrida, por sinal): “O erotismo é, na consciência do homem, aquilo que põe o seu ser em questão” (“O erotismo”). Não quero com essa passagem reduzir a expressão de gênero a uma dimensão erótica, mas associar erotismo, gênero e sexualidade como elementos que põem em questão o ser do ser humano. A própria Luíza tinha problemas em saber o que se passava dentro de si: gostava de mulheres, mas não se identificava como homem. A solução para o problema veio quando a professora viu um casal de mulheres num restaurante: “Percebi que não queria estar ali com elas, eu queria ser uma delas”. Podemos, com as devidas ressalvas ao pensamento de Bataille, substituir “erotismo” por “gênero” ou “sexualidade” que o efeito é o mesmo: interrogar que corpos são esses que se identificam com quais etiquetas de gênero, quais são essas etiquetas, que sexualidades esses corpos circulam e fazem circular, o que se encontra ao abrigo das imposições exteriores (Bataille acreditava que o erotismo é uma experiência interior, singular).

O terceiro ponto é o ensino de filosofia no Brasil. Obrigatório no ensino médio desde 2008, ainda existe uma série de problemas a ser resolvidos: a formação docente na graduação, a formação continuada, a presença de licenciados em filosofia x a presença de licenciados de outras áreas, a falta de um parâmetro curricular claro. Nesse sentido, os Parâmetros Curriculares Nacionais e as Orientações Curriculares de Filosofia são uma porcaria, principalmente por repetirem chavões sobre o papel da reflexão filosófica e da formação cidadã e por proporem eixos temáticos de modo excessivamente resumido (mesmo os PCNs de Sociologia, outra disciplina que se tornou obrigatória em 2008, propõem eixos mais detalhados). Não sei qual era o planejamento adotado por Luíza, se ela seguia um planejamento da escola ou elaborou um próprio, mas posso dar um palpite: a falta de um planejamento estruturado do ensino de filosofia para o ensino básico (e não apenas para o ensino médio) dificulta a apresentação das contribuições da filosofia no terreno de gênero e sexualidade. “Gênero” e “sexualidade”, aliás, são termos que não figuram nos PCNs de Filosofia. São coisas vivenciadas na pele de todo mundo, e vivenciadas de modo ainda mais duro na pele de pessoas como Luíza, mas que não constam nos documentos oficiais mencionados com a atenção que merecem. E esse quadro se torna mais crítico quando ligamos este ponto aos anteriores: se lançar questões pessoais é proibido (1), e se a filosofia dá pouco suporte a essas questões (2), torna-se difícil concretizá-las no ensino de filosofia efetivo (3). Não estou questionando a capacidade de Luíza em realizar essa tarefa, mas partindo da tarefa de Luíza para questionar o quadro geral, sobretudo quando avistamos um amplo movimento de retrocesso em todos os níveis administrativos, com consequências danosas para a educação pública.

Retomando os pontos acima e, desde já, manifestando minha solidariedade a Luíza Coppieters, faço as seguintes conclusões:

1) questões pessoais nunca foram empecilho para tratar temas em sala de aula. O problema não é se a questão é pessoal ou pública, mas o tratamento dado à questão. Um professor evangélico bem preparado não vai doutrinar nem impor a fé os alunos (wishful thinking), da mesma forma que um professor gay ou uma professora trans não vão conclamá-los a largar a heterossexualidade e a cisgeneridade;

2) a filosofia acadêmica (incluindo professores e pesquisadores em filosofia de todos os matizes) precisa explorar gênero e sexualidade com mais afinco nas aulas de graduação. Os professores de filosofia no magistério superior precisam sair do comodismo e fazer a ponte entre o que estudam e esses aspectos da identidade humana, pois depende deles a formação dos licenciandos que atuarão no ensino básico;

3) é necessária uma revisão dos PCNs e das Orientações Curriculares de Filosofia para o ensino médio se quisermos uma consecução dos pontos 1 e 2. Ao mesmo tempo, uma mudança de postura nos pontos 1 e 2 também desembocará nessa revisão – o que, por tabela, trará consequências para os livros didáticos e para materiais paradidáticos em geral. Que os professores e professoras de filosofia façam valer essa revisão e prestar sua solidariedade efetiva às Luízas da vida, dentro e fora de sala de aula.