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Craques que eu não vi jogar: Marinho e suas chagas

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downloadEsta é a história de um menino que fugia de casa para jogar bola na maré. A história de um jovem que aprendeu a jogar futebol de pés descalços nas ruas do Alecrim. A história de um homem chamado Francisco. Essa é a história de mais um craque que eu não vi jogar. Essa é a história de Marinho e as suas chagas.

Francisco das Chagas Marinho, mais conhecido como Marinho Chagas, nasceu na minha cidade, em Natal. Falar de futebol por essas bandas e não o citar é pecado para várias vidas. Era lateral-esquerdo. E apesar ter tido a honra de conhecê-lo pessoalmente e ter atuado no meu time de coração, nunca o vi jogar. Algo que torna sua figura ainda mais especial para a minha mera percepção.

Nas décadas de 50 e 60, o jovem Chiquinho mal imaginava o que o futuro reservara para si. Sempre foi craque e destaque por onde passou. Desde as peladas com bola de pano no time da rua onde morava, o Benjamin Constant Futebol Clube, no qual foi jogador e um dos fundadores, até a Seleção Brasileira que disputou a Copa de 1974.

Teve uma das ascensões mais impressionantes que o futebol mundial já ouvira falar. Meteórica. No fim da década de 60, com 17 anos, espelhado no irmão Dedeca, jogador do Riachuelo Atlético Clube (RAC), o time da Marinha, virou gandula. Certo dia, foi convocado às pressas pelo Sargento Zumba, treinador da equipe, para substituir um recruta rebelde que havia faltado ao treino. Dali em diante, nunca mais largou o lado esquerdo do campo.

No RAC, disputou um campeonato potiguar. Comeu a bola, como dizem por aqui. Era destro, mas jogava com naturalidade pela esquerda. Como disse o escritor Luan Xavier, sonhava com a camisa 10 e talvez por isso tenha, sem querer, sido o criador da posição de ala no futebol. Saía para o ataque sem medo. Diziam ter um jeito irresponsável e ao mesmo tempo encantador de jogar.

Contra o ABC, o grande favorito da temporada 69, foi eleito o melhor em campo. Pela atuação naquele dia, ganhou a chance de brilhar num time de maior expressão. Com o aval do presidente Bira Rocha e do treinador Caiçara, foi contratado pelo Alvinegro pela incrível bagatela de vinte chuteiras e vinte bolas de couro, e no ano seguinte, sagrou-se campeão potiguar ao lado de Alberi, Petinha, Edson e um grande time.

Um ano depois de chegar ao topo em Natal, uma nova oportunidade. A fama do galego bom de bola do ABC chamou atenção do Náutico e ele foi para Recife matar as defesas do coração com sua loucura de ser mais que um lateral. Desfilou sua ousadia no gramado dos Aflitos.

De Recife, alçou voos mais altos. Suas características diferenciadas chamara a atenção de um olheiro um tanto quanto inusitado. O cantor Agnaldo Timóteo, de passagem pela capital pernambucana, impressionado com a desenvoltura daquele menino de cabelos loiros que parecia um atacante jogando na lateral, não pensou duas vezes. Indicou-o, certamente com seu tom de voz exclamativo, imediatamente ao Botafogo do Rio, seu time de coração. “Esse menino é um monstro”. De fato, Marinho era diferente. Numa época em que lateral era peça meramente defensiva, Marinho não marcava, era marcado.

No Rio, chegou de sorriso aberto. Era irreverente e extrovertido dentro e fora dos gramados. Vaidoso e indiscreto. Usava roupas coloridas, pulseiras, cordões, anéis e outros adereços de ouro espalhados por todo o corpo. Desconhecia a palavra limite. Chamava atenção até quando não jogava. Não dava bola para quem falava mal. Era mulherengo, bonito e muito preocupado com a aparência. Talvez o primeiro jogador estilo ostentação, desses que existem de monte hoje em dia. Aos domingos, desfilava não só no gramado consagrado do Maracanã, como também, nas ruas largas e charmosas de Copabacana, no seu Mustang conversível.

O seu prazer era o Maracanã, o teatro dos maiores artistas do futebol mundial, como Marinho definiu o estádio onde ele brilhou. Ganhou apelidos como “O Canhão do Nordeste”, pois chutava de longa distância e tinha um percentual de acerto excepcional, e “Lourão”, devido a sua vasta cabeleira de tons loiros. O principal, “A Bruxa”, foi dado porque diziam que seus cabelos loiros arrepiados levavam os zagueiros ao medo com suas investidas desmedidas ao ataque. A Bruxa assustava as defesas.

Segundo o jornalista Milton Neves, Marinho Chagas foi “um lateral muito além do seu tempo” e “mais completo que o Nilton (Santos)”, grande nome da história botafoguense. Com uma dose de exagero, Neves intitulou Marinho de “O Garrincha de Natal”.

Pelo Botafogo, entre 1972 e 1976, marcou 38 gols em 182 jogos. Ganhou duas Bolas de Prata, como melhor lateral-esquerdo do país, em 1972 e 1973. Entrou para o time do século, sendo capaz de deslocar Nilton Santos para o outro lado do campo, para que coubessem dois gênios na escalação. Chegou à Seleção Brasileira.

Convocado pela primeira vez em 1973, por Zagallo, vestiu a amarelinha durante quatro anos seguidos. Em 1970 era craque nos campos de pelada do Alecrim e em 1974, apenas quatro anos depois, estava na Alemanha buscando um tetra que só viera mesmo mais de vinte anos depois. Disputou a Copa e até hoje é o único jogador nascido no Rio Grande do Norte a alcançar tal feito.

Com a camisa amarela, disputou 36 partidas e marcou quatro gols . Na Copa, perdemos na disputa pelo terceiro lugar, 1 a 0 para a Polônia, em jogo que valeu a Marinho Chagas rixas com o comentarista João Saldanha e com o goleiro Emerson Leão. Antigamente era considerado muito mais importante para um lateral marcar do que apoiar, mas Marinho ignorava o fato, partia para o ataque e deixava espaços abertos na defesa, mesmo que isso lhe custasse um tapa no rosto. É que Leão, nosso capitão, o chamou de “indisciplinado e mal-educado”, admitindo até mesmo uma briga nos vestiários do Estádio Olímpico de Munique, culpando-o pelo gol que deu a vitória a Polônia. Já Saldanha, o apelidou pejorativamente de “Avenida Marinho Chagas”, por atacar demais e descuidar da marcação. Se bem que, se ele recebesse tal homenagem em Natal, seria mais do que justa.

Mas Marinho não queria saber de censura. Ignorava as críticas. Na foto posada tradicional da Seleção, estava ao lado de Leão, e além disso, àquela altura já havia sido eleito pela mídia o melhor jogador do Brasil na competição, apesar de até hoje muitos ainda acreditarem que ele foi o melhor lateral da Copa, título que foi concedido, na verdade, ao alemão Paul Breitner.

De volta ao Rio, continuou brilhando. Em 1977, trocou de camisa. Foi para o Fluminense, mas continuou jogando em alto nível e sendo convocado para a Seleção. Marcou época também no Tricolor. “Marinho é daqueles jogadores que não acontecem mais nunca na história”, disse o presidente do Flu na época, Francisco Horta.

Era um personagem e tanto. Alimentava a mídia com boas histórias, mesmo que muitas não passassem apenas de fofoca. Tinha futebol de sobra, mas juízo em falta. Como na vez que, de férias, já jogador da Seleção e astro do futebol mundial, se atreveu a jogar uma partida do campeonato interiorano do Rio Grande do Norte, o famoso Matutão. Talvez por atitudes como essa, Cláudio Coutinho tenha o deixado fora da Copa da Argentina em 78. Ahh, como eu queria tê-lo visto nem que fosse pelo São Sebastião EC de Nova Cruz, jogando o Matutão.

Mas independente disso, Marinho Chagas foi um vencedor. Acumulou os títulos de campeão potiguar de 1970 pelo ABC, as Bolas de Prata de 1972, 1973, pelo Botafogo, e 1981 no São Paulo, ano em que também foi campeão paulista. Campeão do Troféu Teresa Herrera, em 1977, jogando pelo Fluminense, e campeão do Torneio Bi-Centenário dos Estados Unidos, em 1976, como a camisa da Seleção Brasileira.

Em 1979, Marinho foi convidado por Pelé para jogar no New York Cosmos, um time formado por Turcos nos Estados Unidos, que diziam ser coisa de cinema ou “um time de cinema”, como eles queriam que ficasse conhecida a equipe que contava com astros do quilate de Pelé, Carlos Alberto Torres, Franz Beckenbauer e Johan Cruijff. E a Bruxa era um deles. Era o ídolo brasileiro com cara de americano que o Cosmos precisava. Segundo Marinho, jogar lá era como ser um artista. E ele era, um artista da bola.

Depois da temporada no Cosmos, atuou pelo Strikers da Flórida. Em seguida, voltou ao Brasil. Foi jogar no São Paulo, onde ficou até 1983. Jogou também no Bangú, no Fortaleza, fez dois amistosos pelo América (RN), até decidir voltar ao exterior, onde gozava ainda de grande prestígio e conseguia contratos pelo nome. Atuou ainda pelo Los Angeles Heat/USA e pelo FC Augsburg/Alemanha, até dar cabo de sua carreira em 1987.

Com o fim da carreira de jogador, vieram os problemas. Depois da aposentadoria, levou vários dribles. No início, Marinho mantinha um bom padrão de vida, chegou a fixar moradia nos Estados Unidos por quase uma década. Passou também pela Itália, Líbia e Japão. Foi treinador universitário, técnico das Seleções da Líbia e de Malta e do Heat, onde fora também jogador. Trabalhou com bases no Japão, entre 95 e 97, ajudando no fortalecimento do futebol daquele país, e devido a seu prestígio, dava palestras pelo mundo e era sempre convidado vip em eventos.

Só que apesar disso tudo, Marinho não guardava dinheiro. Levava vida de solteiro, estando casado. Em 1998 separou da esposa e voltou à Natal. Aqui, expôs suas chagas. Bebia muito e gastava tudo o que tinha e o que não tinha. Ele mesmo, ainda em vida, assumiu: “Perdi muito dinheiro por falta de cabeça. A gente sempre pensa que vai durar pra sempre.”

Com o tempo, se viu esquecido e com vícios. Virou “um antigo ídolo”. Sentiu-se abandonado. Investiu em imóveis, pousada e buggys, mas a falta de planejamento não vingou seus negócios. Viu, aos poucos, seu patrimônio reduzir. Não queria trabalhar e a forma mais fácil de esquecer os problemas era sentar nos botecos da redondeza.

A separação da esposa serviu como agente catalisador e o álcool passou de lazer à necessidade. Como escreveu Luan, na biografia da Bruxa, “o álcool virou remédio para as chagas de Francisco”. Teimava em manter seu rito diário de ao menos uma cerveja por dia no trajeto da Praia do Meio até seu apartamento. Morria a cada tragada proibida e a cada gole lícito que consumia. Adquiriu Hepatite C, bronquite, hipertensão e diabetes. Virou vítima de uma doença silenciosa e impiedosa, que mata desmoralizando, o alcoolismo.

Já no final de sua vida, necessitando de ajuda para tratar suas chagas, Marinho foi escolhido como embaixador da Copa do Mundo em Natal. Recebia R$ 1.700,00 por mês e usava os ganhos para alimentar seus vícios. Foi internado por diversas vezes, mas comemorava as altas médicas virando copos e mais copos de cerveja. Dizia sempre: “o meu médico é Deus”.

Morreu em 1º de junho de 2014, dias antes do primeiro jogo da Copa em Natal. Estava em João Pessoa (PB), autografando camisas e álbuns de figurinhas da Copa, quando passou mal. Tinha planos de arrumar os dentes antes da Copa para dar um sorriso mais alegre durante os jogos em Natal. Não teve tempo. Teve hemorragia digestiva, assim como Sócrates, outro craque que eu não vi jogar, e foi brilhar noutro plano.

O maior jogador já nascido em terras do elefante se foi. Virou lenda, como disse Luan. Tornou-se patrimônio humano e lúdico, nas palavras do cronista Alex Medeiros. O mundo nunca mais o virá enganando os marcadores com suas passadas largas rumo ataque.

Perdemos um craque, a estrela do bairro, do Brasil e do mundo, mas ganhamos um ícone que, com certeza, viveu como quis, como uma bruxa solta, e deixou seu nome eternizado na história do futebol potiguar.