Por Elisa Romanna, discente do curso de graduação em psicologia pela UFRN
O diagnóstico de autismo severo e o pessimismo que assombrava o futuro de Raun[i] inquietou Barry e Sahmaria Kaufman, a opinião de especialistas condenara o seu filho: a dificuldade de interação e “subdesenvolvimento intelectual” não poderiam ser superadas. No entanto o casal se posicionou contra esta sentença, lançaram mão do amor pela criança e da criatividade e assim criaram um modelo prático de intervenção para o autismo. O resultado desta atitude foi surpreendente: Raun Kaufman recuperou-se totalmente de seu distúrbio e a iniciativa dos pais converteu-se no programa The Son-Rise, uma abordagem mundialmente reconhecida por sua eficiência em promover o desenvolvimento social, cognitivo e emocional de pacientes autistas.
No Autism Treatment Center of America- uma espécie de centro de ensino em Massachusetts (EUA)- o programa The Son-Rise[ii] é executado em três etapas: um curso fundamental e dois cursos de formação avançada voltados para o aperfeiçoamento da assistência à crianças e adultos com transtornos invasivos do desenvolvimento, como o autismo e a Síndrome de Asperger. O objetivo dessa abordagem educacional é detectar os interesses e preferências sensoriais do autista e, a partir de atividades lúdicas e espontâneas, desenvolver as habilidades cognitivas e relacionais, por exemplo, da criança. No que refere à família do indivíduo com dificuldades de interação, a meta do projeto é capacitar os pais para que eles incorporem o método Son-Rise ao cotidiano e sintam-se seguros para treinar uma equipe de apoio disposta a aderir a prática de ensinar brincando, a adotar uma postura proativa e otimista frente aos progressos do autista, mantendo-o motivado e livre de recintos com excesso de distrações.
Diante disso, é possível notar a existência de uma relação causal entre a adoção do perspectivismo no trato do autismo e a eficácia do método Son-Rise. Este novo tratamento fundamenta-se, primeiramente, no alcance de uma profunda compreensão da cosmologia que orienta a visão da criança autista sobre si mesma e sobre o mundo. Neste caso, à semelhança dos princípios de Carl Rogers (psicólogo e idealizador da Abordagem Centrada na Pessoa), os cuidadores e especialistas são convidados a construírem uma verdadeira empatia pelo indivíduo com problemas de desenvolvimento e a exercitarem a alteridade, isto é, o ato de colocar-se no lugar do outro para entender a força motriz de comportamentos indesejados, como o isolamento. Dessa forma, a decisão de adentrar no universo do autista permite a identificação dos aspectos que motivam, intimidam ou despertam a curiosidade do paciente, facilitando assim a eleição da estratégia de aproximação mais adequada à disponibilidade, por exemplo, da criança com bloqueios relacionais.
O programa The Son-Rise também busca desmitificar a noção de que o autismo configura-se uma eterna falha no modo de ser do sujeito, uma concepção, segundo Michel Foucault, decorrente da “lógica” do diagnóstico psiquiátrico. Na verdade, o método delineado pelos Kaufman mostra-se sincronizado com o pós-Expressivismo, o qual enxerga cada sujeito como um portador de uma interioridade inesgotável, como um ser apto a conceber uma quantidade infinita de articulações subjetivas ao longo da vida. Isso significa que esse novo modelo de tratamento rejeita a subestimação das potencialidades do autista ou a fixação de limites à sua capacidade de desenvolver-se e de aprimorar a convivência em grupo. Dessa forma, a impossibilidade da recuperação deixa de pertencer ao autista e passa a ser uma restrição teórica da Psiquiatria tradicional.
Além disso, na perspectiva Son-Rise os sintomas do autismo não são vistos como manifestações a serem prontamente corrigidas, tampouco como alvos de censura. Atestando esse ponto de vista, os cuidadores rompem com a necessidade de neutralização imediata do distúrbio relacional e com o distanciamento, tão valioso à manutenção do profissionalismo para psiquatria conservadora, e unem-se à criança no momento em que ela apresentam um “stim”, ou seja, um comportamento repetitivo e estereotipado. A reprodução desta atitude transcende a simples imitação e sinaliza à criança que a sua conduta não constitui uma “matéria punível”, uma prática digna de condenação. Nesse caso, a réplica do comportamento comunica ao paciente a existência de uma abertura, como bem elucida a doutora em Psicoterapias Atuais Ana Maria Feijoo, à diferentes modalidades de relação, o que fortalece a confiança do paciente e o estimula, por exemplo, a estabelecer contato visual com o outro.
É importante salientar que a abordagem criada pelo casal Kaufman analisa o autismo com viés holístico, considerando o impacto das demandas sociais ou parentais por “normalidade” comportamental,sobretudo na dinâmica familiar do paciente. Tais exigências, na visão foucaltiana, são fruto da atuação do poder sobre a existência humana: o homem é educado para apreciar a disciplina, ensinado a corresponder as exigências por produtividade e rapidez, recompensado à medida que torna-se um corpo útil. Com isso surge um padrão desejável de desenvolvimento, interação e de conduta, o qual deve ser apresentado desde a tenra idade pelo sujeito. Quando a criança autista mostra-se diferente deste modelo “ideal” a família, como defendeu o antropólogo e sociólogo canadense Erving Goffman, se vê pressionada e incapaz de reproduzir as normas sociais, então grande mal estar emocional instaura-se nos pais devido a estigmatização do filho como “indivíduo problemático” e da família como uma unidade disfuncional.
Ciente dessa realidade, o programa The Son-Rise oportuniza a desarticulação da “microfísica do poder” que aflige a emoção dos pais e simultaneamente furta-lhes a capacidade de reinventar a forma de educar, de administrar com criatividade as diferentes necessidades do autista e de cada membro da família, enfim, de admitir que a maneira de viver pode ser arquitetada em descompasso com as expectativas historicamente formuladas e incorporadas ao imaginário coletivo. Para isso, a estratégia Son-Rise é estreitar o diálogo com pais, proporcionando a manifestação de medos e frustrações resultantes da convivência com o autismo para, em seguida, estimular a ressignificação desta experiência. O objetivo do projeto é treinar os genitores para serem os principais facilitadores do desenvolvimento do parente autista, preparando-os para reconhecerem as oportunidades diárias de aprendizado e interação verbal e não verbal, estimulando-os a forjarem um vínculo com o autista fundamentado no apreço genuíno e na aceitação mútua.
Portanto, o valor do método Son-Rise torna-se inegável não somente pela sua aplicabilidade prática e eficaz, mas também porque desaprova que o autismo seja percebido como um obstáculo intransponível, uma eterna incompetência do sujeito em comunica-se de forma clara e desenvolver-se adequadamente. O nome do programa dos Kaufman, uma alusão à palavra inglesa “sunrise” cuja tradução é “nascer do sol”, denuncia o propósito dessa nova abordagem: garantir o amanhecer de uma nova perspectiva que não delimita fronteiras ao potencial do sujeito autista.
[i] Referência do caso de Raun Kaufman: Tolenzani, M. (2010). Son-Rise: uma abordagem inovadora. Revista Autismo. Disponível em: http://www.revistaautismo.com.br/edic-o-0/son-rise-uma-abordagem-inovadora
Site do
[ii] http://www.autismtreatmentcenter.org/contents/languages/portuguese_version.php