Às companheiras de #partidA
Por Marcia Tiburi*
Feminismo é um daqueles termos que, ao ser pronunciado, incomoda. Seu alto potencial de transformação social não agrada aos conservadores que pensam e atuam a partir da lógica da dominação masculina.
No senso comum há um discurso estrategicamente misógino. Fala-se mal do feminismo para sustentar uma posição que ele põe em perigo. Ora, se o feminismo é uma potência de transformação radical da sociedade é porque abala a estrutural dominação masculina e tudo o que ela envolve. A estratégia misógina é reacionária, busca abalar o feminismo para que ele não perturbe a ordem estabelecida.
Precisamos resgatar e introduzir a força transformadora do feminismo no cotidiano. A promessa de transformação social radical só se realizará se nos comprometermos com o feminismo como ético-política. A ético-política feminista envolve aspectos e objetivos sobre os quais precisamos conversar.
A intuição e a consciência feminista
Hoje em dia vemos muitas pessoas se sentindo feministas, se dizendo feministas e outras afirmando que não sabem muito bem o que isso pode significar, embora simpatizem intuitivamente com algo que possa ser feminismo. É que o sentimento ou o desejo de feminismo surge na pele das pessoas que percebem o machismo estrutural presente nas instituições e no cotidiano da cultura. O feminismo aparece, em primeiro lugar, na intuição de que há problemas sociais que envolvem desigualdade no âmbito de gênero. O feminismo poderá um dia não precisar mais do conceito de gênero, mas por enquanto, este é o seu núcleo fundamental, sobretudo em sociedades que ainda não avançaram em termos de direitos humanos. A luta feminista é uma luta por direitos a partir da constatação de que consciência de gênero, sexualidade, classe e raça é condição de possibilidade de transformações efetivas.
Quem é feminista, de algum modo, já problematizou sua própria auto-definição. Há pessoas que se afirmam feministas porque lutam por direitos apenas das mulheres, há outras que defendem direitos da humanidade, há quem compreenda o feminismo como revolta e quem o entendem como conciliação. Que existam vários tipos de feminismos, ninguém duvida. Uns podem ser mais coerentes que outros, mas não existe teoria feminista perfeita ou prática feminista ideal. E isso porque não se faz feminismo real longe de suas circunstâncias. O feminismo não é uma abstração sem aplicabilidade. Ele é uma teoria/prática que passa a ter uma dimensão ético-política ao mirar na construção de uma democracia radical, que chamamos de democracia feminista.
O feminismo nasce como crítica do patriarcado, da dominação masculina, sem se esgotar na crítica. Como ética, o feminismo corresponde à formação de subjetividades capazes de incluir o outro. Como política, o objetivo do feminismo é produzir uma sociedade que supere os sistemas de privilégios, inclua todas as pessoas e defenda o vasto espectro da alteridade e da diversidade: corpo, natureza e cultura.
Por isso, o feminismo combate preconceitos e ressentimentos, mas não pelo simples prazer de combater. Seu combate visa abrir espaço à expressão criadora do novo. O novo que o feminismo busca é a construção social inclusiva, que acolhe o dissenso e mantém o diálogo.
Ético-política
O feminismo é a superação da separação entre ética e política. Ele é reconciliação do que foi destruído pela política tradicional, a saber, o desejo de ser quem se é em um mundo em que respeito e responsabilidade coletiva tenham lugar.
Do ponto de vista teórico/prático, a ético-política feminista tem duas características:
1 – Autocrítica. O feminismo é crítica social que tem em vista uma questão nuclear: o gênero. A questão de gênero, junto à questão de classe, de raça e de sexualidade, é ocultada pelo regime de pensamento e ação que sustenta a dominação masculina, modelo que se reproduz em todas as formas de dominação.
Contudo, o feminismo não é a crítica que tenta se colocar no lugar daquilo que critica, como se fosse um novo poder que vem simplesmente substituir o poder antigo. Antes, é uma proposta de transformação social que visa fazer diferença em termos concretos. Todo feminismo que busca ser consistente, de certo modo, transforma o que denominamos poder por algo como uma potência. Faz o que é vertical tornar-se horizontal. Desmonta o que é repressivo, para dar lugar ao compreensivo.
Se o poder é conservador, a potência é transformadora.
O feminismo exige o pensamento sobre o próprio feminismo. Neste sentido, o feminismo é autocrítico. Não é ideologia fechada, dogmática e típica do poder cujo jogo de linguagem é o da disputa. O feminismo precisa ter em vista o cuidado teórico/prático que evita produzir contradições capazes de aniquilar o próprio feminismo como potência de transformação social. Por isso seu esforço deve ser auto-reflexivo e autocrítico.
A autocrítica do feminismo leva a perceber a importância e, ao mesmo tempo, os limites da sua questão nuclear, a questão de gênero. Por isso, surge em nossa época um feminismo que se organiza em termos de intersecção de gênero com sexualidade, raça e classe. Padrão de normalidade e plasticidade (aparência – inclusa a etnia e a cor da pele – e idade) também precisam fazer parte dos tópicos analisados e trabalhados na teoria/prática do feminismo.
É em função da autocrítica que o feminismo sobrevive e se torna cada vez mais capaz de transformar a sociedade. Isso vem a constituir a sua segunda característica fundamental.
2 – Diálogo. A ético-política feminista sustenta-se como dialógica. Isso porque nenhum feminismo pode se ter por suficiente ou superior aos demais. Logo, nenhum feminismo é absoluto. Nenhum feminismo pode estar fechado a outro feminismo. Desqualificar outros feminismos é fazer o jogo da dominação masculina.
Muitas pessoas se perguntam se há um feminismo capaz de unir todos os feminismos, mas sabemos que o regime da dominação masculina é que espera unidade de pensamento. Ao contrário, o feminismo é um regime de pensamento e ação que convive com o dissenso, que valoriza a diversidade do pensamento e, por isso mesmo, por não ser uma nova forma de autoritarismo revestido de boas intenções ou de discursos politicamente corretos, é que o feminismo se coloca como diálogo. A ético-política feminista defende a riqueza da diversidade teórica que leva ao diálogo feminista e evita a presença de elementos autoritários que, assim como se imiscuem na democracia, podem contaminar o feminismo.
Ora, é a dimensão dialógica que nos torna seres políticos e democráticos. O diálogo radical, levado até as últimas consequências, é a metodologia essencial do feminismo. Por isso é que feministas se reúnem em grupos. O feminismo é produção de potência entre pessoas. É a construção de um “comum”, de um “entre nós” que não significa uniformidade. Por isso, o feminismo não é simples união, nem simples reunião.
Feminismo é defesa de singularidade e de multiplicidade produzindo formas dialógicas de ação ética e política contra toda forma de dominação.
Democracia feminista é o nome atual de uma democracia radical.
* Artigo publicado originalmente na Revista Cult