Por Alyson Freire e Carlos Eduardo Freitas
Em 1950, o filósofo e sociólogo alemão Theodor Adorno publicou um estudo para desvendar as condições psicossociais de adesão dos indivíduos ao fascismo, isto é, a inclinação irrefletida, e baseada no ódio ao outro, de se submeter cegamente a autoridades manipuladoras. Essas autoridades vão desde líderes políticos paranoicos à publicitários, celebridades, intelectuais, etc.. Adorno e seus colegas deram a esse nascente tipo subjetivo, que, para eles, formava uma das bases de sustentação do fascismo e do crescimento de tendências antidemocráticas na sociedade, o nome de “personalidade autoritária”. Realizado para compreender “o perigo da loucura totalitária em massa” e a emergência da sociedade de consumo nos EUA, esse clássico estudo sociológico, no entanto, nos diz bastante sobre o Brasil atual e as configurações de personalidade vigentes e socialmente determinadas.
A aprovação, após mais uma manobra de Eduardo Cunha (PMDB), da redução da maioridade penal sob novo texto e, mais ainda, a celebração social na Câmara e redes sociais mostram o quanto a adesão às tendências antidemocráticas e à posição política individual sustentada no ódio ao outro consolidam-se e crescem em força entre nós. Precisamos, com urgência, pensar e compreender quais foram as pré-condições políticas e psicossociais que nos conduziram a “personalidade autoritária” que, entre nós, é definida por uma mentalidade profundamente antissocial, indiferente à desigualdade social e refratária ao reconhecimento da experiência de injustiça das minorias. Nesse sentido, queremos destacar uma dessas pré-condições: a visão de mundo economicista dos governos do Partido dos Trabalhadores.
Os segmentos mais conservadores da direita brasileira aprenderam direitinho a cartilha de Gramsci. Passaram 10 anos no trabalho ideológico de persuasão e adesão, via as novas mídias digitais e das linguagens morais da afirmação individual e do conservadorismo de costumes do senso comum. E o PT achou que governaria com alianças partidárias e lograria o apoio da população apenas com a política econômica, quer dizer, com estabilidade econômica, controle da inflação, incentivo ao consumo de bens duráveis e obras estruturais. Governabilidade mais consumo de massa, eis a fórmula mágica. Acreditou que ao impulsionar a expansão do mercado de consumo de massas, garantindo certo nível de inclusão social, teria garantido para sempre o seu passe eterno de governo legítimo. Errou feio. E errou porque menosprezou a importância do trabalho de educação cultural pública como sustentação e adesão de valores democráticos e racionais.
O PT optou por colocar em prática políticas de expansão da educação superior (pública e privada) sem monitorar a qualidade técnica dos cursos oferecidos nem a qualidade do compromisso ético e cívico com a cidadania. Ignorou solenemente a criação e expansão de projetos, programas e espaços públicos de educação, cultura e lazer que proporcionassem democratização e cultivo da experiência intelectual, estética, moral e de emancipação das artes, da diversidade cultural, da cultura popular, do conhecimento científico, do debate público de ideias e dos esportes. E, por último, subestimou a força socializadora das novas tecnologias sobre uma parcela significativa da juventude da primeira década do século XXI, algo que já vem sendo apontado por milhares de pesquisas nas áreas de sociologia da educação e pedagogia.
Agora o estrago é monumental porque o PT fez muito pouco com respeito ao processo de educação política e intelectual das novas gerações no sentido da afirmação do compromisso civilizatório com a democracia, os Direitos Humanos e com o Estado Constitucional de Direito. Atualmente, não há descompasso maior do que os valores codificados na Constituição de 88 e as práticas e valores compartilhados pela maioria da população brasileira. O PT, em seus quase 13 anos de governo federal não foi capaz de criar um consenso coletivo generalizado em torno de alguns hiperbens de civilização (democracia, direitos humanos, solidariedade social, liberdade política e dignidade humana). Nem mesmo o combate à desigualdade e o incremento da inclusão social se consolidaram e se generalizam plenamente como valores fortes e inegociáveis, apesar dos avanços nessa vital agenda. Essa grave falha, decorrente de sua visão economicista do sentido e papel da política, contribuiu para a renovação geracional do lastro social conservador e para a organização política de uma nova direita no país, extremamente afiada e conectada com as aspirações e anseios morais das camadas médias e jovens. Essa nova direita, mesmo tendo perdido a luta política nos últimos anos, vem acumulando vitórias na esfera cultural e de opinião, ou seja, na esfera de formação de valores e atitudes. Aqui está a base da atual “onda” conservadora e autoritária pela qual passa o país, que permitiu que projetos moribundos como o “Estatuto da Família”, a Redução da maioridade penal e a transformação do aborto em crime hediondo renascessem, conquistando corações e mentes em larga escala.
O diagnóstico do filósofo brasileiro Vladimir Safatle se mostra cada vez mais preciso: a esquerda ganhou o poder estatal, mas perdeu a hegemonia cultural (no caso do atual governo Dilma, é lícito aceitar que a esquerda perdeu também a hegemonia governamental). Não tem política econômica que reverta isso. Pois é na educação e na esfera pública que deve ser travada a luta por cultura moral e civilizatória comprometida com ideais de equidade, reconhecimento das diferenças e defesa da dignidade humana. Porém, mais uma vez, também aqui o governo deixa os dois ministérios estratégicos (educação e cultura) a esse respeito completamente desarmados e fragilizados com duros cortes. O PT, por certo, acha que o consenso coletivo em torno do jogo da democracia será eterno. Errou mais uma vez, porque agora o que estamos assistindo é a ascensão de uma juventude educada com princípios abertamente antidemocráticos, antissociais e refratários aos Direitos Humanos, criando assim uma base social organizada e ativa de legitimação para a eleição e atuação de agentes da repressão, pastores fundamentalistas e ruralistas no congresso nacional. Essa juventude e frente parlamentar sombria voltam-se não apenas contra o PT mas contra a própria democracia.
A adesão a valores universais precisa ser sempre renovada e reforçada institucionalmente. E nesse sentido, o PT desprezou, de uma só vez, tanto a experiência política dos novos movimentos e coletivos sociais das lutas por reconhecimento quanto a produção científica da área de ciências humanas que apontava para profundas mudanças culturais em curso na sociedade contemporânea. Na verdade, não apenas o PT mas a esquerda instituída, dos partidos políticos, sindicatos e movimento estudantil deixaram de lado as novas elaborações em termos de teoria crítica e os diagnósticos sociológicos e filosóficos que poderiam armá-los com indispensáveis subsídios e dados. Marcos Nobre, filósofo político e professor da Unicamp, há anos alerta sobre o “peemedebismo” e o golpe que este infligiria no PT. Resultado: temos uma esquerda intelectualmente preguiçosa e defasada.
A esquerda perdeu, portanto, a possibilidade de se atualizar com toda a nova literatura da filosofia política, das teorias da justiça, da etnologia indígena e antropologia urbana e de sociologia rural, da nova sociologia econômica, dos estudos culturais e pós-coloniais, entre tantos outros, que destacam a existência de uma efervescência política e cultural na sociedade brasileira (novas etnicidades e sexualidades, novas sociabilidades urbanas, novas formas de vida e novos ideais de bem viver). É nessa efervescência cultural que o PT poderia renovar sua base social. Mas o partido dos trabalhadores preferiu ser o partido do operariado sindical do ABC paulista e continuar no velho e surrado modelo da classe operária/sindicato/partido/Estado.
Talvez, Fernando Haddad, prefeito de SP, tenha sido o único que enxergou além da viseira economicista do PT. Implementou políticas públicas cujo sentido forte é o aprendizado coletivo, criando proximidade com o novo paradigma da ecologia urbana que toma conta de grandes metrópoles cosmopolitas no mundo. Mas, como é sabido, não contou com a solidariedade plena do seu partido, que cultiva a eterna desconfiança, o preconceito e até mesmo o desprezo por intelectuais humanistas. E onde o PT foi se apoiar ideologicamente? No “novo desenvolvimentismo”, acreditando que este seria capaz de conciliar o caldeirão explosivo de economia, cultura e política do Brasil. Esta escolha equivocada acabou sendo o fiador da repetição da história, não como tragédia econômica, mas como farsa civilizatória.
A aprovação provisória da redução da maioridade penal é mais uma das vitórias seguidas da personalidade autoritária e a expressão cabal da derrota da esquerda no campo da educação pública e ética da sociedade. Essa derrota no campo da cultura e da educação está fragilizando enormemente nossa democracia, criando o cenário perfeito para um oportunista autocrático como Eduardo Cunha impor suas convicções pessoais à revelia das instituições democráticas, da sensatez e da Constituição.