Semana passada foi um festival de arco-íris no Facebook. A aprovação do casamento homoafetivo pela Suprema Corte americana para todos os EUA gerou uma comoção virtual: simpatizantes e ativistas da causa postaram textos em gratidão à conquista e mudaram a foto do perfil, que assumia uma marca d’água colorida. Do Havaí à Flórida, da Califórnia ao Texas, a população LGBT tem, a partir de agora, garantia “ampla e irrestrita” a um direito conquistado a ferro, fogo e sangue.
Aqui no Brasil, infelizmente, não podemos dizer o mesmo. O foco das atenções é a redução da maioridade penal, que queima os miolos de ambos os lados. Até dois dias atrás, muita gente comemorou que a lei não passou. Foi por muito pouco, é claro, mas não passou. (Isso, é claro, até a manobra de Eduardo Cunha, que pôs a votação em pauta a portas fechadas e de madrugada, fazendo com que a lei eventualmente passasse em primeiro turno.)
Não vou entrar nos desdobramentos desses dois fatos. Basta lembrar, por um lado, que o casamento homoafetivo, mesmo como conquista legítima do segmento LGBT, não beneficia esse mesmo segmento por igual, principalmente se considerarmos que as pautas gays costumam ofuscar as demais. Por outro lado, acredito que a comemoração da não aprovação da redução da maioridade penal (vou ficar fanho aqui no computador, de tanta nasal escrita) foi um gesto desesperado, beirando o mau gosto. Não há o que comemorar quando um projeto de lei não passa porque faltaram quatro votos. É como um lutador de MMA cantar vitória porque não foi à lona quando termina o round, mesmo levando uma surra do adversário.
Falou-se, por ocasião da comemoração pelo casamento homoafetivo, em vitória do amor. #LoveWins pra lá, #LoveWins pra cá… Uma das coisas mais cafonas que conheço é dizer que o amor ganhou. Ora, quem garante que os adversários da proposta não lutem também pelo amor? Os cristãos não distorcem o próprio discurso ao dizerem que, mesmo errados quanto à sexualidade, lésbicas, gays, bis e trans são amadas por Deus? A mesma estrutura discursiva pode, no outro extremo, ser encontrada em um texto como o “Scum Manifesto“, de Valerie Solanas, que propõe a exterminação imediata dos homens, ao mesmo tempo em que retrata o amor como atributo exclusivo das mulheres. No primeiro caso, a população LGBT não sabe o que é o amor, por violar as leis divinas; no segundo caso, são os homens que desconhecem esse sentimento, devido à dominação patriarcal exercida sobre as mulheres.
Alguém pode objetar que a comparação acima é injusta, que a virulência de Solanas não pode ser comparada à de um pastor como Malafaia. Mas não é isso que está em pauta. O peso é desigual, obviamente, porque são milênios de patriarcado oprimindo não apenas mulheres, mas qualquer um que saia da cartilha patriarcal. O problema é a estrutura discursiva adotada por ambos os lados. Quem garante, por essa estrutura, que o conteúdo será diferente de acordo com quem propõe? São duas versões do #LoveWins recontadas do modo que convém a seus defensores.
Uma outra objeção pode ser feita. Não é da estrutura que se trata, mas do conteúdo conceitual. É o adversário que não sabe o que é o amor. Aí eu jogo a pergunta: o que é o amor? São milênios de meditação nas mais diversas vertentes do conhecimento humano, da religião à filosofia, da psicologia à neurociência. O consenso é mínimo, mesmo entre aqueles que mais se afinam.
A mesma coisa se processa com o caso da redução da maioridade penal. Li em alguma postagem que a educação venceu. Já viram essa história em algum lugar? Pois é… Brecar a redução da maioridade penal depende de uma série de medidas que não se restringem à educação. É necessário que os adolescentes (sobretudo aqueles com 16 anos ou mais) tenham acesso a políticas efetivas de trabalho, lazer e saúde, apenas para citar algumas. De que adianta um adolescente ter acesso a uma boa educação se não consegue um trampo por falta de experiência e não tem acesso amplo e efetivo a bens culturais? Não custa nada lembrar que a própria concepção de educação (tô fanho de novo) subjacente à defesa da redução da maioridade penal é diversa: meritocrática e naturalista (“educação vem de berço”). E essa concepção está presente, inclusive, em programas como o Mais Educação. Deixa de gastar a grana com projetos na escola pra ver o que acontece…
Dizer, portanto, que o amor venceu – que a educação venceu, que a juventude venceu – é um engodo. É uma cantilena apropriada aos que estão no poder. Vocês acham mesmo que Mark Zuckerberg, Boticário, Google e tutti quanti são solidários ao casamento homoafetivo por abnegação genuína? Li, um dia desses, que os liberais foram pioneiros no apoio ao casamento gay. Bastante conveniente esse texto, tendo em vista não apenas o flerte político entre liberais e conservadores, mas também a pouca quantidade de liberais que são efetivamente favoráveis a essa bandeira. Apoiar o casamento homoafetivo é extremamente oportuno porque significa mais lucros para essas empresas, que já exploram a atenção dos consumidores gays há bastante tempo (embora deixem lésbicas, bis, trans e não binárias de fora).
Da mesma maneira, comemorar que a redução da maioridade penal não passou é ingenuidade, na melhor das interpretações. As pessoas que comemoraram na rede talvez tenham se esquecido de que uma proposta de emenda constituição, para ser aprovada, precisa passar em dois turnos pela Câmara dos Deputados e pelo Senado. É conveniente às bancadas evangélica e da bala que as pessoas comemorem essa vitória aparente – pois a vitória efetiva é delas. Pra que ficar tristinhos com quatro votos a menos, se se pode manobrar a votação, não é, seu Eduardo? Pra não falar de Aécio, que deseja “apenas” um aumento na internação dos menores infratores. Quem vai financiar a construção de estabelecimentos para atender a essa medida? O poder público, com esse arrocho fiscal? Considerando o PSDB (e a própria experiência de Aécio no governo de Minas), quem vai cair matando (!!!) com essa proposta são as empresas de segurança. E nada de reduzir a quantidade de internos! Quanto mais presos, maior o lucro.
Um espectro ronda o Brasil: o espectro do retrocesso em suas mais diversas nuances. Esse mesmo espectro assombra, é claro, os Estados Unidos e a Europa. É ele o responsável maior por essa mistificação das lutas emancipatórias. Os setores oprimidos – mulheres, LGBTs, negros, jovens, pobres, deficientes – precisam se lembrar de que a história que conhecemos é a história dos vencedores. #LoveWins é um artifício consequente dessa história, que precisa ser recontada imediatamente. É claro que comemorar avanços de luta é válido, mas devemos sempre botar um olho no padre e outro na missa. Falar em vitória dos oprimidos quando se tem tanta coisa pra conquistar é, ainda que involuntariamente, uma forma de ceder à dominação dos opressores. Uma pena.