Search
Close this search box.

Pode o “Louco” Agir? Silenciando As Vozes Da Esquizofrenia a partir do Avatar

Compartilhar conteúdo:

Por Elisa Romanna, discente do curso de graduação em psicologia da UFRN

Poucas histórias são tão trágicas quanto a da loucura. A “desrazão” perdeu o privilégio que detinha na Grécia antiga ao deparar-se com a racionalidade. Desde então a insanidade foi expulsa das cidades, encerrada em manicômios, animalizada, tratada como objeto de estudo da psiquiatria, categorizada até, enfim, ser enquadrada na classe das patologias. No entanto, o período pós-Segunda Guerra viabilizou a emergência de uma nova compreensão acerca das doenças mentais, de modo que, na contemporaneidade, a “loucura” é percebida enquanto existência-sofrimento  do indivíduo em relação ao corpo social.

Nesse contexto, o advento da reforma psiquiátrica propôs uma transformação nas estratégias de abordagem das psicopatologias, estimulando assim o corte com reducionismo e instrumentalização típica das intervenções tradicionais destinadas, por exemplo, a lidar com a esquizofrenia. Com isso, o alvo dos saberes “psi” passou a ser o sujeito humano e não mais a doença. Ademais, outras formas de “invenção da saúde” puderam sobrepor a busca cega pela cura das psicoses. Logo, instaura-se um cenário favorável ao surgimento de novos tratamentos para a esquizofrenia, os quais dispensem os neurolépticos e requisitem uma maior participação no paciente na recuperação do próprio bem estar.

Motivado por esta realidade, Julian Leff dedicou-se ao estudo de uma alternativa à ineficácia da medicação apresentada por um em cada quatro pacientes esquizofrênicos. Este psiquiatra e professor da University College London, juntamente com sua equipe, desenvolveu um sistema computadorizado, o qual permite os pacientes criarem “avatares”, isto é, personagens virtuais à semelhança das próprias alucinações. Feito isso, o terapeuta interpretava o discurso hostil das vozes persecutórias por meio do avatar, assim como, utilizando sua voz normal, encorajava o paciente (disposto em outra sala) a confrontar a retaliação do ícone gráfico.

À medida que o indivíduo passava contestar tal abuso, a fala do personagem tornava-se solidária e o controle do avatar gradativamente era cedido para o paciente. Com isso, os pesquisadores objetivavam que o paciente transferisse a experiência da liderança sobre o ícone gráfico para o próprio universo psíquico, logo, o domínio do sujeito sobre a alucinação auditiva se efetuaria independentemente do auxílio do terapeuta. O resultado desse estudo foi publicado na British Journal of Psychiatry e mostrou-se promissor: os dezesseis concluintes do tratamento tiveram suas alucinações atenuadas, dentre os quais três tornaram-se livre das vozes.

Um olhar mais atento notará que essa nova abordagem mostra-se incompatível aos preceitos do modelo de agente desprendido, obstinadamente defendidos desde o filósofo inglês John Locke. Na verdade o tratamento utilizando avatares estimula o abandono da postura despreendida inerente ao “Self pontual” (imagem de agente humano vinculada a tradição epistemológica racionalista e representacional), pois o paciente é convidado a realizar uma exploração engajada do sintoma da alucinação. Isso significa que ao invés de objetificar as emoções despertadas pela fala do ícone gráfico, o paciente deve valer-se das suas impressões para elaborar um juízo tendencioso sobre o avatar. Dessa forma, a análise imparcial dos conteúdos mentais, tal como acreditava Locke e que ainda faz parte da crença de grande parcela da tradição epistemológica positivista, é substituída pela implicação do indivíduo diante da hostilidade das vozes persecutórias.

É valido salientar também que a pesquisa de Julian Leff vai de encontro ao discurso da anormalidade (denunciado por Michel Foucault), o qual sequestra o poder de atuação e de influência do paciente psiquiátrico sobre o mundo ao passo que o delineia como um ser “emocionalmente instável”, “imaturo” ou “intelectualmente frágil”. Rejeitando essa concepção reducionista, o estudo com avatares busca restituir a agência ao indivíduo esquizofrênico, estimulando-o a abandonar a passividade frente aos sintomas e ao tratamento. Nesse caso, o objetivo primordial do terapeuta é abandonar a postura de único detentor de controle sobre as alucinações e transferir este domínio para o paciente, encorajando-o a confrontar o representante das ilusões auditivas e a recobrar a própria autonomia psíquica.

Ademais, o treino realizado com o avatar possibilitou ao paciente a habilidade de gerenciar as experiências alucinatórias fora do ambiente terapêutico. Este resultado corrobora a ruptura com o paradigma de que um sujeito psicótico é incapaz de apresentar autodomínio mental. Conforme o indivíduo renuncia esta concepção interiorizada de que é incompetente para administrar o próprio universo psíquico, o temor da alucinação auditiva é gradativamente convertido em intrepidez. Sendo assim, é plausível considerar que o revigoramento da auto estima oportuniza a repreensão de vozes persecutórias em casos de esquizofrenia.

É importante ressaltar que o estudo de Julian Leff facilita que o médico apreenda melhor a dimensão do sofrimento do paciente. Nesse sentido, o avatar permite a exteriorização de uma angústia psíquica outrora de domínio exclusivamente privado. Dessa forma, ao observar empiricamente o impacto da fala do personagem virtual no comportamento do esquizofrênico, o terapeuta passa a ter uma maior compreensão sobre como a convivência diária com vozes abusivas e coercitivas destrói a qualidade de vida do paciente, a ponto de fazê-lo considerar o suicídio. Com isso o psiquiatra pode analisar, com mais cuidado, os desdobramentos da psicose na vida do indivíduo lançando mão do ponto de vista da experiência trágica, o qual pertencia à visão clássica acerca da “desrazão”. Nesse caso, a metamorfose do discurso do ícone gráfico, de tirânico à compassivo, auxilia a superação do caos de uma condição limite da existência humana.

Diante disso, o caráter inovador do tratamento com avatares transcende a inegável contribuição das novas tecnologias no âmbito médico e emerge, verdadeiramente, da atribuição de novas qualidades que contrariam os “rótulos” historicamente imputados ao paciente psiquiátrico. Nessa pesquisa, o esquizofrênico não difere da concepção de sujeito no Humanismo. Ao contrário, aqui o ser humano é um ser dotado de recursos internos para superar adversidades, capaz de se autorrealizar, de ressignificar experiências, mudar o próprio comportamento e de elaborar novos conceitos sobre o mundo, os outros e sobre si mesmo.

Nesse sentido, a irrefutável pertinência de iniciativas como a Julian Leff sinaliza o avanço da Psiquiatria em direção à construção de um discurso menos clínico, pautado na adoção de práticas mais éticas e humanizadas. Deste modo, o imaginário coletivo também poderá libertar-se dos preconceitos e paradigmas científicos que usurpam a autonomia do paciente psiquiátrico. Por conseguinte, o indivíduo esquizofrênico poderá ser identificado pelo que realmente é: um ser humano, em sua totalidade e singularidade, detentor de um valor inalienável e cuja subjetividade se desenvolve ininterruptamente a partir da interação com o outro e com o mundo.