Tenho um grande amigo chamado Birita. Essa semana, por acaso, o encontrei passeando pelos corredores de um shopping. Conversamos por um bom tempo, relembrando algumas histórias que ficam no passado, mas que sempre nos trazem boas lembranças e gargalhadas, apesar da dificuldade financeira que ele me revelou estar passando atualmente. De qualquer forma, Birita não deixa a peteca cair. Estampado em sua face, continua o mesmo ar risonho de anos antes, que expressa excesso de felicidade a cada boa lembrança que lhe vem à memória. Sabe viver, esse Birita.
Pois é, Birita, na verdade, se chama Joenilson. Durante muitos anos foi massagista de um time de futebol. O apelido, que dependendo do lugar, nesse Brasilzão de minha gente, também é conhecido por água-que-passarinho-não-bebe, branquinha , cana, danada, goró, malvada, pinga ou simplesmente cachaça, ele herdou de um antigo massagista do time. Quando o Birita original se aposentou, Joenilson, até então seu auxiliar, o fiel escudeiro, assumiu o posto de titular e a alcunha, que carrega até hoje.
Do Birita mais antigo, pouco ou nada se via. A não ser a arte da massagem. Tinha mãos de ouro. Joenilson sequer era parecido com ele. Nem ele mesmo sabe o motivo real ou quem primeiro o chamou assim. A única explicação é a de que Birita, como substituto, herdara não só o cargo de massagista, como também o apelido curioso. Mas se bem que Birita fazia jus ao codinome. Gostava de saborear suas cachacinhas de vez em quando e, por mais de uma vez, chegou a ultrapassar seus limites nas bebedeiras.
Nas mesas dos bares que costumava frequentar, jurava ser campeão em levantamento de copo e recordista mundial pelo maior número de doses viradas em um só dia, com direito a registro no Guiness Book. Depois das primeiras doses, mesmo sem nunca ter frequentado uma sala de aula, virava especialista em política, guerra, religião, lançamento de dardos, pescaria, culinária, humor, física quântica, astrologia, novela, cinema, futebol, mulher e, é claro, cachaça. Sabia um pouco de tudo e de tudo um pouco.
Admirador convicto do Rei Roberto Carlos, não saltava os pés das dependências do Bar do Boga enquanto o dono não rodasse a música Lady Laura na radiola que só tocava a melodia se alguém despejasse nela uma nota velha e quase extinta de um real, o que convenhamos, com o tempo, tornou-se cada vez mais raro. Gostava dessa música, talvez, porque nutria a esperança de voltar a ser novamente um menino ou por fazê-lo recordar um amor de adolescente, já que sempre chorava ao ouvir a canção.
Mas Birita é um homem do bem. Apesar dos defeitos, só tenho elogios para ele. É boa pessoa, quando sóbrio. O único problema era essa persistência em não saber a hora de parar de beber. Foi numa dessas bebedeiras que ele, ao voltar pra casa cambaleando, acabou discutindo com a mulher. Fora de si, quis bater no filho e acabou agredindo a esposa. Saiu de casa sem destino e findou virando a noite no clube. Mas não antes de ouvir uns desaforos da patroa, que ameaçou denunciá-lo a polícia.
No dia seguinte, recuperado dos porres da noite anterior, embarcou para um jogo do campeonato brasileiro. Passou a viagem completa abatido, irrequieto e angustiado. O tempo todo com a cabeça nas nuvens. Aliás, os pés também. Estava fora de si, o danado do Birita.
A causa disso tudo foi o medo de, ao voltar pra casa, encontrar a Polícia Federal no aeroporto, com um par de algemas, para levá-lo preso. A boleirada ao descobrir o motivo do nervosismo do pobre Birita, caiu em cima. Faziam questão de lembra-lo da situação a cada cinco minutos. Um deles chegou a imprimir uma cópia da Lei Maria da Penha de cabo a rabo para entregar ao coitado. Outro, dissimulando solidariedade, entregou-lhe o cartão de visitas de seu advogado. “Pode ser útil na hora do julgamento”, pronunciava sério, antes de proferir uma gargalhada sarcástica.
Depois de dias de sufoco, uma derrota a mais no campeonato e muita gozação, Birita enfim pôde sossegar. Todos, sem excessão, tiraram sarro da situação. Quando finalmente Birita chega ao aeroporto, de volta à cidade, pro seu alívio, não havia ninguém à sua espera. A esposa não fizera a denuncia que prometera na noite do quiproquó.
Não foi daquela vez que o danado se deu mal. Tanto que ele estava aqui comigo, horas antes, recordando esse causo. Livre, leve, risonho e solto. De bom nisso tudo, é que serviu como lição. Nunca mais ele tocou numa só gota da maldita.
Esse é o meu amigo Birita. Uma história digna da literatura melancólica dos escritores da segunda fase do Romantismo. Quase um poema de Álvares de Azevedo. Com um final quase feliz. Birita não foi preso, mas também nunca mais viu a cor ou ouvir falar do paradeiro da sua amada, porém agora, ex-esposa.