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Malafaia, a rola e o moralismo de esquerda contra o humor

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A repercussão da atitude de Ricardo Boechat tá longe de se esgotar. Como bem apontou Renato Rovai, “onde o Malafaia for o guizo vai tocar”. Traduzindo: quem falar em Silas Malafaia, depois da declaração de Boechat, vai se perguntar se o pastor achou a rola, se tá procurando ainda… A carreira dele nunca mais será a mesma. Tirar o guizo vai ser difícil – e olhe que sempre foi difícil botar um guizo no pescoço de Malafaia.

No sábado passado, li o texto de Jarid Arraes sobre o assunto. Ela, ao contrário de Rovai, foi bastante incisiva em questionar a estratégia. Por que rola é solução pra tudo? Ela se concentrou especificamente no caso da bandeira feminista e do quanto esse símbolo, a rola, ofende, machuca e mata mulheres todos os dias. No entanto, gostaria de me focar num ponto defeituoso do texto dela, por ser sintomático de uma parcela da esquerda:

“Aparentemente, a solução sugerida para a homofobia também é rola. Muitos enxergaram a colocação do jornalista como humorística, mas é possível argumentar, no entanto, que o próprio Boechat foi homofóbico ao fazer tal colocação; por sua própria lógica, bastava que ele procurasse uma rola e assim não gastaria mais seu tempo cometendo equívocos no meio de outras frases perfeitamente eficientes.”

Concordo com o texto sobre a supervalorização da rola. Loa Antunes escreveu um excelente artigo sobre a patologização da homofobia na Carta Potiguar. Com relação ao humor, entretanto, devem ser feitas as seguintes ponderações:

1) “a solução precisa passar por consequências legais, incluindo a responsabilização pelo discurso de ódio que ele propaga, muita psicoterapia e pelo menos algumas aulas sobre gênero, sexualidade e Direitos Humanos.” – Isso não vai resolver o problema dos Malafaias da vida, a menos que eles ou sejam mais jovens ou tenham alguma abertura para rever suas posições, o que não é o caso. A lei, educação e terapia têm em comum o fato de que precisam de tempo pra surtirem o efeito desejado. O humor, por ser algo notoriamente ágil, ignora alguns obstáculos enfrentados por essas alternativas e, de alguma forma, também provoca as pessoas a pensar, mais do que meramente rir. O que me leva ao próximo ponto;

2) o humor se constitui a partir de uma lógica da interdição, digamos, “originária”. Não existe interdição que não possa ser violada pela atividade humorística. O humor não possui finalidade, não possui orientação sexual, alinhamento político ou religioso. O fato de ele se conformar dentro desses limites não é contradição – pelo contrário, atende a essa condição inicial. Prova disso é que, eventualmente, podemos ver os mesmos movimentos discursivos de humor na direita e na esquerda, entre héteros e homos, entre crentes e ateus;

3) o pressuposto do trecho do texto de Jarid Arraes é compartilhado por muita gente, inclusive pelos sequazes de Malafaia. “É só uma piada”. NÃO é só uma piada. A piada é apenas uma das inúmeras materializações do humor. Além disso, quem disse que uma piada não pode ser séria? Jarid Arraes e outras pessoas têm razões legítimas para questionar o gesto de Boechat e a reação dos internautas, mas essas razões não devem necessariamente se transformar em impeditivo. Esse impeditivo não irá deter o humor; mesmo que controlado temporariamente, ele emerge de volta à cena discursiva, fazendo o retorno do recalcado e desarmando seus proponentes (como a própria Arraes). Dizer que Malafaia precisa de uma rola não deve ser encarado como um mero gracejo, mas também como denúncia de uma percepção hipócrita e limitada da sexualidade humana. No instante em que isso é percebido, a força do “Malafaia precisa de uma rola” desabrocha e manifesta sua potência mais avassaladora. Não tem coisa que um homofóbico da qualidade dele tenha mais medo que uma rola;

4) outro pressuposto compartilhado por essa mesma esquerda é o moralismo quanto ao humor. A esquerda tem tanta coisa pra se diferenciar da direita, que trata as coisas com um moralismo tacanho – mas, como disse Criolo, acaba mordendo o anzol dela. Vão me dizer que não é moralismo, que Boechat poderia ter usado outra expressão… Inês é morta, minha gente. Falou, tá falado. E é moralismo, sim. Quem diz que Boechat ofende mulheres e gays com o gesto dele, porque rola remete à dominação patriarcal, tá perdendo uma coisa de vista: Malafaia só não tá cagando e andando pra isso porque ele ganha quando fazem a denúncia da figura dele dessa forma. Malafaia tá nem aí pro patriarcado porque isso é papo de feminista. Só que, sem perceber, essa esquerda acaba compartilhando do mesmo moralismo que aquele endossado por Malafaia.

A melhor forma, então, é jogar fora as regras de polidez e justiça. Dar um chute no saco mesmo do oponente. Dependendo de quem dá o chute no saco, a dor é ainda maior – e eu garanto que, se fosse UMA jornalista (Marília Gabriela, por exemplo) em vez de Boechat, Malafaia iria reclamar mais ainda. A força seria maior por um motivo simples: a apropriação de um discurso opressor pela pessoa oprimida surte um efeito maior porque ela desmonta a opressão a seu favor. Vai com Deus, Malafaia. Vai com Deus e a pomba da paz.