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Foucault: a polêmica, a cátedra e o personalismo escolástico

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O filósofo francês Michel Foucault disse, certa vez, não gostar de polêmicas. Ao seu juízo, em vez de uma ética da discussão na busca conjunta por uma verdade importante e difícil, o que se desenrola de fato nelas é antes de qualquer coisa uma moral belicista e excludente. Nega-se ao outro o direito e a legitimidade de pretender validade as suas posições e pontos de vista. Por princípio e autoatribuição, somente uma das partes considera possuir ou ser digna da legitimidade da palavra, da verdade e da divergência, de modo que, de partida, encontram-se minadas as possibilidades do diálogo, do esclarecimento mútuo e da admissão e correção do erro. As polêmicas, portanto, além de estéreis e inócuas quanto ao objetivo que uma disputa de ideias deveria perseguir (o esclarecimento recíproco dos interlocutores), exprimem uma relação autoritária e unilateral com a verdade e com o outro.

foucault e apoiaodresA despeito dessa postura crítica, tal não impediu que o celebrado autor de Vigiar e Punir entrasse ou fosse objeto de controvérsias e querelas ao longo de sua vida e, também, após sua morte em 1984. Mais recentemente, em terras brasileiras, o veto a criação da cátedra Michel Foucault na PUC-SP ensejou mais um capítulo na história das controvérsias que continuam a envolver o nome e o pensamento do filósofo francês. Artigos inflamados na imprensa, manifestos, mesas redondas, petições online, protestos, enfim, tudo o que um pensador com a notoriedade que Foucault logrou e com a força intelectual e política de sua obra, que alargou nossa compreensão sobre o poder, a história,  a sexualidade e o sujeito, produziriam numa situação como a que assistimos na PUC.

A meu ver, a questão da cátedra Michel Foucault na PUC-SP parece conter, em seu desenrolar e nos argumentos de ambas as partes contendoras, algo da moral da polêmica, tal como nos descreveu Foucault, de maneira que alguns importantes aspectos acabam por ficar à margem ou simplesmente bloqueados na reflexão. Por isso a relevância de pensar um pouco mais seriamente a polêmica e contra as emoções que o imbróglio suscita, exercitando a “coragem da verdade” e do “dizer franco”, atitude de risco, como definia o próprio filósofo.

De um lado, temos justificativas que tentam ressaltar a incompatibilidade entre a iconoclastia do filósofo e a identidade do pensamento católico, de outro, acusações sobre o obscurantismo e o fundamentalismo do Conselho da PUC enquanto as reais forças motivadoras do veto. Um e outro tentando subjugar a outra parte com uma retórica intransigente e pouca aberta aos pontos de vistas em conflito. Em outras palavras, trava-se um duelo exterminador.

Não quero aqui me colocar num ponto arquimédico, como se minha análise fosse neutra e pusesse termo na polêmica em questão. Não, não se trata disso e nem me arvoro com dita capacidade. Penso apenas em colocar algumas ponderações críticas acerca de toda essa celeuma acadêmica.

Em primeiro lugar, como uma instituição de caráter confessional, parece-me legítimo a PUC recusar a criação de uma Cátedra de um autor que, segundo ela acredita, não coaduna com os princípios filosóficos da instituição – o que é, destaque-se, bem diferente de tentar impedir o seu ensino, a divulgação de sua obra, a existência e o auxílio de pesquisas e congressos a respeito. Uma instituição de educação e de produção de conhecimento pode, ao mesmo tempo, cultivar uma determinada identidade filosófica e ideológica, e preservá-la, mesmo possuindo e aceitando em seu seio a existência de pensamentos críticos e contrários ao que apregoa a identidade imaginada e cultivada. Em outras palavras, a PUC não precisa render homenagens nem conferir privilégios ao pensamento de Foucault e a seus adeptos. Em respeito à liberdade de expressão e pensamento, ela deve garantir a liberdade de seu estudo, debate e pesquisa, pois tal não causa prejuízo algum a identidade imaginada que seus gestores e financiadores se aferram.

No entanto, reconhecido esse direito, cabe uma importante crítica: a recusa sumária sob a justificativa dada, além de desprestigiar a larga contribuição dos pesquisadores e professores da PUC que, em seus estudos nas mais diferentes temáticas e especialidades, utilizam Foucault como um dos principais aportes, e contrariar o passado democrático recente da PUC quando, no período da ditadura militar, numa lição histórica de respeito ao dissenso e àqueles que pensam diferentemente, acolheu vários professores perseguidos pelo regime autoritário, tais como Florestan Fernandes, Octávio Ianni, Bento Prado Jr. e Paulo Freire, revela algo verdadeiramente incompatível com a ideia de universidade: o pluralismo de pensamentos sem restrições de ordem dogmática. A PUC coloca-se como universidade, católica, verdade, mas ainda assim universidade. Não lhe retiro o direito de ser uma instituição religiosa e de agir e se pautar como tal, contudo, ao desejar manter uma orientação mais homogênea e estrita do que acredita ser sua identidade institucional, não faz sentido pretender carregar no nome a palavra “universidade”.

Se, por um lado, critico as contradições da PUC, por outro, não concordo com a proposta de criação da Cátedra imagesMichel Foucault, seja ela na PUC ou em qualquer outra universidade. No período em que lecionou no Collège de France, Foucault ocupou uma cátedra cujo título consagrava antes um programa de investigação (“História dos sistemas de pensamento”, nome dado pelo próprio Foucault) do que o nome de um grande pensador. Em vez de um personalismo escolástico, resquício de honrarias nobiliárquicas de distinção, Foucault oferecia uma verdadeira oficina de ideias e pesquisas. Mais do que a homenagens e altares escolásticos, que mais não fazem do que consagrar e definir os “intérpretes autorizados”, ou seja, aqueles que detém o poder de “verdade” sobre um pensamento e suas variações, penso, que é a isso (a institucionalização e reconhecimento de um programa de investigação da realidade) que uma universidade deve se comprometer para realizar e praticar sua verdadeira função social, pedagógica e civilizatória.

Os materiais e áudios das aulas de Foucault enviados a PUC devem estar condicionados à qualidade e à força das investigações, ou seja, chancelar à excelência dos pesquisadores da instituição, sejam eles da PUC ou de outra instituição, e não atrelado à introdução de sua alcunha a uma cátedra como pré-condição. Especialmente em se tratando de Foucault, temos um evidente contrassenso, pois este foi um ácido crítico da função autor, dos mecanismos de controle sobre os discursos e dizia que escrevia “para não ter mais um rosto”.. Recebidos, então, os arquivos, cabe a PUC, portanto, se responsabilizar e zelar por sua conservação, garantindo o acesso a todos os pesquisadores e estudantes que queiram estudar, sem dispor obstáculo algum. Assim como a liberdade de ensino e expressão, qualquer coisa diferente disso merece a mais dura cobrança e denúncia.

Se o que se quer, com efeito, é criar uma Cátedra, então, que se faça, por assim dizer,  seguindo o espírito foucaultiano da “caixa de ferramentas”, e não a idolatria de seu nome ou personalidade. Dito de outro modo, uma Cátedra, ou melhor, uma oficina de ideias e investigações heterogêneas, que exprima seu programa de investigação – uma arqueogenealogia do sujeito na civilização ocidental. Muitos dos problemas que Foucault investigou, os conceitos e métodos de que se valeu, continuam sendo relevantes e instigantes diante dos nossos problemas, de nossa atualidade. Nesse sentido, nomes para dita cátedra não faltariam: “História, verdade e sujeito”, “História dos Modos de subjetivação”, “Saber, poder e sujeito”, entre outros tantos.

Finalmente, imagino que diante dessa querela acadêmica, talvez, Foucault riria com a alegria e ironia que lhe era peculiar. Riria dos trêmulos bispos que o veem como uma ameaça diante do que consideram sagrado. Um instrumento perigoso de profanação da “identidade católica”. Riria dos “foucaultianos”, que, no afã de ver e ter o seu nome sobre a cátedra, parecem desejar converter o próprio Foucault numa espécie de objeto sagrado, de culto e veneração coletiva, o qual deve ser entronizado no templo da nobreza filosófica e acadêmica. Ora, dentre as valiosas lições que o pensamento de Michel Foucault nos legou, uma delas consiste exatamente em não cultivar uma atitude de culto em relação aos autores e teorias.  Foucault, aliás, jamais teve uma relação sacerdotal com os seus mestres. Soube profaná-los. Sua relação com Kant, Marx, Nietzsche ou Canguilhem consistia em utilizá-los, aplicá-los, em realizar com seus pensamentos experimentações teóricas e empíricas.

O que devemos reter imperiosamente do estudo da obra de Foucault , no entanto, não se restringe a uma atitude metodológica. Afinal, importa guardar, para as mais diversas situações e relações, o que ele chamava de “atitude crítica”, quer dizer, o exercício da arte da não servidão voluntária e da indocilidade reflexiva contra os poderes constituídos, contra as evidências de nossas pressuposições, contra a vontade de saber e, por que não, contra as artimanhas daquilo que o sociólogo Pierre Bourdieu chamava de “razão escolástica”.