A brutalidade estatal contra os professores do Paraná ocorreu entre o período de celebração de duas datas históricas carregadas de significado político: 30 anos da Redemocratização do Brasil e o Dia Internacional do Trabalho. Somado à truculência física e política, fartamente evidenciada nas cenas, imagens e número de feridos, temos, então, um ingrediente simbólico que torna o violento episódio ainda mais vergonhoso e brutal. De uma maneira dolorosa, ele aponta, com efeito, para uma reflexão premente acerca dos limites de nossa Redemocratização e os sentidos em que avançamos a propósito do respeito ao trabalho e aos trabalhadores. Desse modo, o ataque ordenado contra os professores paranaenses aporta relevantes características acerca do momento político em que estamos e os dilemas que temos de enfrentar.
Em primeiro lugar, os 30 anos da Redemocratização do país. Em 15 de Março de 1985, depois de mais de 20 anos de repressão militar, o Brasil restabelecia a democracia com a posse de um presidente civil, o vice-presidente de Tancredo Neves, José Sarney, e, assim, reabria o processo democrático com partidos políticos, convocação da Constituinte, eleições diretas, maior liberdade de ir e vir e manifestação e de expressão política.
Em segundo lugar, o Dia Internacional dos Trabalhadores ou do Trabalho, 1 de maio. Uma data histórica que estabeleceu, no mundo, um marco civilizatório quanto às relações de trabalho e os direitos das pessoas que dele vivem; jornada de 8 horas, melhores salários, descanso semanal remunerado, direito à greve, período anual de férias. Não custa lembrar que a data é, também, uma homenagem aos trabalhadores da cidade de Chicago (EUA) que, em 1886, em 1 e 4 Maio daquele ano se mobilizaram e foram às ruas para reivindicar melhores condições de trabalho, sendo por isso brutalmente reprimidos pela polícia local. O saldo macabro da repressão foi 20 trabalhadores mortos, centenas de feridos e presos, que, depois, em julgamento foram condenados ao enforcamento. No Brasil, tivemos, historicamente, nessa data o anúncio de novas leis trabalhistas, novos salários mínimos, a criação da Justiça do Trabalho (1941), entre outras medidas de celebração e reivindicação dedicadas a melhorar as condições dos trabalhadores no país.
A ofensiva contra a mobilização dos professores, que estão protestando e lutando contra a perda de benefícios trabalhistas e previdenciários dos servidores públicos estaduais, mostra o quanto a nossa cultura e instituições políticas ainda não assimilaram plenamente o legado civilizatório das duas marcantes datas históricas evocadas acima. Como pudemos observar no cerco da Polícia Militar paranaense a Assembleia Legislativa e como sentiram no corpo os professores paranaenses, a redemocratização do país não eliminou o entulho autoritário da Ditadura e sua voracidade por reprimir e marcar nos corpos dos indivíduos a força do Estado.
As atitudes do governador Beto Richa (PSDB) da Polícia Militar revelam a continuidade de diversos traços autoritários da Ditadura: práticas abusivas de poder que se impõem à revelia dos interesses e bem-estar populares, o uso da violência como política de Estado e a banalização da repressão violenta contra mobilizações políticas e manifestantes. Sobre esse último ponto, dois exemplos ilustram terrivelmente a banalização da repressão violenta: primeiro, o vídeo feito da sacada da sede do governo do PR em cujo áudio podemos ouvir a comemoração e o entusiasmo com as agressões que os professores estavam sofrendo; segundo, a comunicação oficial da coordenadora de imprensa da PM paranaense que assim afirmo a respeito da ação da polícia: “Desproporcional seria o uso de armas letais”.
Estamos diante, com efeito, de um aparato de poder que assume como limite da desproporcionalidade de sua ação o limite de tirar a vida do outro ou de utilizar armas para tal, como se tudo mais abaixo desse limite, o abuso, a violação, a truculência, o uso excessivo da força, a tortura, fossem atos aceitáveis, legítimos e proporcionais. Isso por si só já é assustador e bárbaro. O mais absurdo é que aceitemos com tamanha naturalidade essa fala estando num democracia! Esse entendimento absurdo expresso na comunicação da PM somente é possível porque a mentalidade autoritária que animava e banalizava o uso da violência durante o período da ditadura persiste entre nós. Ou seja, a violência e brutalidade estatal não apenas encontram abrigo nas instituições mas continuam sendo tratadas como um fato banal, natural ou, na melhor das hipóteses, um mal necessário que parte da sociedade aceita e, em alguns casos, celebra – como demonstram o áudio e os entusiasmos coletivos atuais da sociedade brasileira com a pena de morte na Indonésia e com a proposta de redução da maioridade penal. Tudo isso, a meu ver, revela o quanto os discursos de esquecimento das violações aos Direitos Humanos e de minimização da violência, da arbitrariedade e do trauma da Ditadura brasileira desfruta de força e aceitação em nossa sociedade não importando se estamos em um regime democrático, o qual deveria, em tese, ser profunda e efetivamente contrário a qualquer tipo de mentalidade e atitude que atente contra a integridade e dignidade das pessoas.
Os abusos do governo e da PM paranaense contra a luta dos professores pelos direitos e garantias dos servidores exprimem ainda o desrespeito persistente contra os trabalhadores e suas mobilizações na tentativa de lhes impor, à força, como bem se viu, um provável futuro de insegurança socioeconômica, passando por cima, sem tergiversações, de suas expectativas e insatisfações. O que temos assistido no Paraná nos últimos meses é um projeto de retração planejada do papel de proteção social do Estado no que se refere ao trabalho – o que vem ocorrendo, também, a nível nacional, diga-se, pela ação de um congresso conservador e com a anuência de um partido que carrega “trabalhadores” em seu nome. Insegurança socioeconômica e desproteção social, duros e nefastos golpes que se somam às balas de borracha, bombas, pitbulls e cassetetes infligidos contra aqueles que, no dia-a-dia, estão acostumados somente a empunhar gizes, livros e cartazes. Contrário a tudo, portanto, contra o que a classe trabalhadora em todo o mundo lutou ao longo dos últimos séculos. Este foi o presente dado pelas autoridades públicas aos trabalhadores do Paraná.
O que se pode esperar de um Estado que bate em seus educadores? Que tipo de desenvolvimento e educação um Estado como esse espera promover tratando de modo tão brutal aqueles sob cujas mãos estão a responsabilidade de formar e ensinar as gerações presentes e futuras? A seguir assim, criminalizando e agredindo professores, Estado e sociedade naufragam juntos num oceano de estupidez e barbárie, não há outras palavras.
Portanto, que o episódio tenha ocorrido às vésperas do Dia Internacional do Trabalho e envolva diretamente questões e direitos dos trabalhadores somente agrava e confirma nossa dificuldade em eliminar heranças autoritárias e assumir os legados civilizatórios da história, como o são a Redemocratização e o Dia Internacional do Trabalho. Essa dificuldade e a resistência em lidar efetivamente com os resquícios autoritários que continuam a atuar na atualidade prolongam a sombra do Estado de Exceção e, em razão disso, coloca em questão o nosso processo de democratização e a necessidade de criar novos rumos e parâmetros para, assim, quem sabe, eliminar o que resta da Ditadura. A barbaridade, que deixou mais de 200 feridos, cometida contra os professores do Paraná não pode ficar impune em um regime democrático, pois, que característica é mais definidora de uma ditadura senão a impunidade da violência cometida? Especialmente, da violência que é realizada pelas mãos do Estado contra os indivíduos. Foi isso o que, lamentavelmente, vimos na tarde do dia 29/04/2015. As balas de borracha e bombas também feriram, gravemente, a democracia brasileira e mancharam de sangue o dia primeiro de Maio.
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Imagens: Paulo Lisboa / Brazil Photo Press
Link para o video: https://www.youtube.com/watch?v=Ram0jFobI2s