Em abril de 1997, o índio Galdino Pataxó veio a Brasília para entregar uma carta de seu povo ao presidente da República. Galdino dormia em um ponto de ônibus quando cinco jovens de classe média alta atearam-lhe fogo. O índio da etnia pataxó teve 95% do corpo queimado e acabou falecendo em 21 de abril de 1997. Dezoito anos depois deste triste episódio, neste mês em que se comemora o dia do índio, há muitas questões mal resolvidas sobre os sentidos de reconhecer o outro, sobre a construção da identidade (pessoal – Galdino e coletiva – pataxós e tantas outras etnias), e sobre a luta por reconhecimento dos povos indígenas no Brasil.
Concretamente, a história de Galdino reflete exemplarmente a lógica de uma experiência de desrespeito e conflito social que vem se repetindo em nossa sociedade e que revela (em alguma medida) o “déficit de cidadania” que persiste em relação aos povos indígenas no Brasil. Mais, há um confronto de horizontes semânticos distintos, isto é, a compreensão de que os “índios não são gente”, “não possuem cidadania”, até por “não possuírem alma” ou “não serem considerados humanos verdadeiros”. Esta compreensão circula como gramática moral de segmentos sociais – como a dos jovens da classe média alta que julgaram engraçado atear fogo no corpo de alguém. Tudo isso, claro, implica uma concepção de sociedade informada por interesses diversos e mal informada sobre sua principal fonte institucional de referência moral, qual seja, a Constituição Federal de 1988. Se isso ocorre, é porque o diálogo interétnico e intercultural não se assume democrático neste caso.
Como se sabe, no Brasil, recentes lutas sociais por acesso a direitos civis levaram os operadores do direito a repensar e ampliar o sentido de reconhecimento legal. De fato, a partir de 1988, podemos falar em “avanço civilizatório”, se entendermos a Constituição Federal do período como um instrumento legal de reconhecimento de direitos, na medida em que tal conjunto de regras traduz na letra de leis que o nosso Estado Nacional é “pluriétnico” e “multicultural”. Com efeito, todo direito, em sua elaboração e aplicação, tem esse marco como referência e dele não poderá se afastar, ideia amplamente discutida entre operadores do direito, a exemplo de Deborah Duprat, Subprocuradora Geral da República.
Ainda em relação à sensibilidade jurídica brasileira para as diferenças, há que se reconhecer avanços legais importantes na consolidação da coexistência com igualdade de direitos de diferentes comunidades étnicas, práticas erótico-afetivas, confissões religiosas e formas de vida. Avanços legais que em grande medida foram informados pela literatura das ciências sociais. No campo da antropologia, por exemplo, poderíamos mencionar várias pesquisas de caráter etnográfico que analisam os repertórios discursivos e as práticas sociais de grupos que formulam demandas de reconhecimento e de acesso a direitos, abordando o tema das sensibilidades jurídicas e dos sentidos de justiça.
Nesse sentido, o recente contexto nacional de avanços na democracia é marcado por importantes iniciativas como a promulgação da Constituição Federal do Brasil de 1988. Evidentemente, não sem conflitos na esfera jurídica. Ainda sobre isso, o antropólogo Stephen Baines (2008) avalia a consolidação do movimento indígena entre 1970 e 1980 que pressionou politicamente as instituições para assegurar os direitos indígenas numa intensa mobilização nacional e internacional para terem seus direitos reconhecidos na Constituição de 1988. Para este antropólogo as modificações trouxeram um potencial emancipatório a partir do ativismo indígena e traduz para nós uma importante referência da mobilização de movimentos sociais articulando o poder judiciário para assegurar suas demandas.
Não por acaso, atualmente, em nosso país, fala-se de um crescente processo de judicialização dos conflitos sociais, processo que teve início, conforme já mencionado, na década de 1980. Porém, convém ressaltar que a judicialização da luta por reconhecimento no Brasil, em grande medida, tem possibilitado a renovação contínua da nossa gramática institucional de direitos, posto que tem atualizado o sentido de justiça e bem comum numa nova linguagem, esta última, passando pela inclusão de grupos até o presente excluídos da rede de proteção social do nosso ordenamento jurídico estatal.
Nesse sentido, ao colocar e atualizar na esfera pública, a agenda das demandas de reconhecimento, os diferentes movimentos sociais estimulam debates e processos de aprendizado coletivo sobre o sentido socialmente mais legítimo de moralidade e de justiça. Galdino Pataxó está mais vivo do que nunca, a intensa agenda de mobilizações dos povos indígenas revelou-se um verdadeiro campo de educação moral para o povo brasileiro, que antes de tudo precisa ainda se pensar pluriétnico e multicultural.