A redução da maioridade penal frequentou a propaganda das eleições presidenciais de 2014. Nos últimos dias, ela voltou à pauta dos debates políticos. Muito se tem argumentado (no sentido de levantar motivos racionais e/ou explícitos), a favor ou contra. Não devo me estender retomando esses argumentos. Douglas Belchior, republicando o texto do Movimento 18 Razões para a Não Redução da Maioridade Penal (1), comentou que realiza um questionamento simples: “Queremos justiça ou vingança?” (2). Alyson Freire, aqui na Carta, se concentrou nos aspectos sociológicos do problema (3). O que me motivou a escrever, no entanto, foi o seguinte parágrafo de Marcelo Pellegrini na Carta Capital (4):
“Apesar do parecer negativo na CCJ, nada indica que a proposta será rejeitada pela comissão. Se aprovada, a PEC colocará o Brasil entre os 54 países que optaram por reduzir a maioridade penal. Entre todos, os resultados foram unânimes: ao contrário do esperado, não se registrou redução nas taxas violência. Como resultado, Espanha e Alemanha já voltaram atrás na decisão de criminalizar menores de 18 anos, segundo a Unicef. No entanto, países como os Estados Unidos seguem como exemplo do fracasso dessa política. Com penas maiores e mais severas previstas aos jovens entre 12 e 18 anos, o país assiste seus jovens matarem uma em cada dez pessoas vítimas de homicídios.”
Ou seja: o que vai definir ou não a redução da maioridade penal não são aspectos técnicos, jurídicos e biológicos, mas aspectos ideológicos e psicológicos (no caso, a identificação afetiva dos proponentes ou adversários da proposta). Não tendo dado bons resultados nos países que instituíram a redução da maioridade penal, o que leva os simpatizantes brasileiros a acreditar nela como solução para a realidade prisional do Brasil? De resto, esclareço minha posição contrária à redução da maioridade. Entretanto, em vez de me deter em algum dos argumentos contrários, proponho pensar em fatores que, a meu ver, são pressupostos fundamentais dos argumentos a favor. Aí vão:
a) Inspiração divina. Talvez o No texto da Carta Capital de onde extraí o parágrafo acima, há um dado interessante: parlamentares evangélicos, como Marco Feliciano (é, aquele que foi presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias), deram apoio declarado à PEC 171/93. Sabemos do papel do cristianismo na política representativa brasileira. Sabemos também da farsa de um Estado laico que pendura crucifixos nas mais variadas repartições públicas. Sabemos também da tolerância como valor eminentemente cristão e pilar do liberalismo político. Ora, qual é a ideia básica da tolerância? Suportar o outro (mulheres, negros, gays, menores infratores) até certos limites, colocando-o sob tutela de um indivíduo ou entidade (o Estado brasileiro, por exemplo). Quando o outro rompe, questiona ou transgride esses limites, alguma providência (!!!) precisa ser tomada. Líderes cristãos como Feliciano se valem desses três pontos – o cristianismo na política representativa brasileira, a farsa do Estado laico e a tolerância como valor religioso e político – para aumentar seu raio de ação, ajudando parlamentares afins a enfraquecer conquistas históricas como o Estatuto da Criança e do Adolescente (pra não falar da postura contrária à união homoafetiva e à legalização do aborto). Na qualidade de pretensos porta-vozes da divindade, esses líderes se valem do poder que possuem para atravancar as lutas por emancipação. Ah, mas você pode me lembrar da Pastoral da Juventude do Meio Popular, de linhagem católica, que se posicionou contrária à redução da maioridade penal (5). E eu respondo: que bom que se posicionaram. Temos, então, mais uma aliada contra a proposta. Mas não tenho certeza se a referida pastoral possui força suficiente pra agregar outros cristãos (católicos ou não). A PJMP é exceção, não regra. (Se eu estiver enganado, me avisem.)
b) Implementar a redução da maioridade penal com a esperança de que, no Brasil, aconteça diferente. Ora, o que pode dar errado com a redução da maioridade penal? Vamos pensar com calma: o Brasil tem um dos maiores índices de homicídio do mundo, sendo os jovens a maior parte das vítimas. Temos também uma taxa de natalidade cada vez mais baixa. Só que precisamos de mais jovens e mais recém-nascidos pra renovar a população, manter a economia (formal e informal) circulando, ampliar a previdência pública – precisamos, sobretudo, de mais jovens e recém-nascidos pra dar uma arejada no futuro (embora eu tenha minhas dúvidas quanto a Isabela Trevisani, Fernando Holiday e Kim Kataguiri). Matando mais jovens, brecamos esse processo; encarcerando jovens menores de 18 anos, os alimentamos com medo. E desespero. O que pode dar errado em uma proposta adotada por 54 países, quando dois deles – Alemanha e Espanha – desejam voltar atrás e países como os Estados Unidos possuem uma das maiores populações carcerárias do planeta? Aí você me vem com o Delegado Waldir, deputado federal de Goiás, que fala em estabelecimentos exclusivos pra menores de 18 anos e uma pena militarizada: “Vamos ver se esses adolescentes não serão recuperados” (6). Ah, mas no domingo é dia dos adolescentes rezarem, né, Waldir? E aí me lembro da inspiração divina acima. O que pode dar errado, né?
c) Satisfazer a demanda crescente por molho pardo na imprensa marrom. Comecei a assistir um dorama sul-coreano, “Pinocchio”. Recomendo pela história e pela diferença significativa em relação às novelas brasileiras – tenho observado uma tendência cada vez maior, nos doramas, de explorar problemas do dia a dia e menos mela-cuecagem. “Pinocchio” conta a história de dois irmãos que buscam se vingar de uma repórter que noticiou um acidente de modo sensacionalista, de modo a responsabilizar o pai deles, bombeiro. Ela afirmou, na cara limpa, que o bombeiro era culpado pelas mortes de dois empregados – que, aliás, saíram vivos do prédio em chamas e espalharam o boato de que havia gente lá dentro. Além dessas supostas mortes, morreram vários bombeiros subordinados ao pai desses jovens. A mãe deles, por outro lado, não aguentou o trauma e se suicidou.
Voltando ao ponto: um país que implementa medidas de valorização da população juvenil não é bom pra imprensa marrom. Não dá notícia. Já pensou em um Brasil onde o espaço pro jornalismo policial tenha uma queda significativa? Isso só pode acontecer em circunstâncias nas quais os menores de 18 anos tenham o devido cuidado por parte das autoridades quanto à educação, saúde, trabalho e lazer. Cabe também fazer valer o ECA. Mas a imprensa marrom não vive de esperança; vive de desespero; mais ainda, vive de implantar o medo na população em geral. E essa imprensa desenvolveu uma simbiose tão forte com o militarismo e os desmandos da lei que não é possível conceber um Bolsonaro sem um Wagner Montes (no Rio de Janeiro) ou um Papinha (no Rio Grande do Norte). Essa imprensa prescinde da necessidade de esclarecer a população quanto aos dados de homicídios cometidos por menores (menos de 1% do total), quanto à quantidade de jovens mortos (30 mil em 2012), quanto à quantidade de jovens negros mortos (77% do total) (7)… E se depender de um Feliciano ou um Bolsonaro, de pouco ou nada valerá ter um marco regulatório da mídia.
d) Transformar o senso comum em critério consistente de decisão no âmbito penal. Os defensores da redução da maioridade penal se valem da assustadora maioria de 93% da população, que concorda com a proposta (8). Eu poderia até dizer que isso é argumentum ad populum (se todo mundo faz, eu também devo fazer), mas não adianta. Num país onde o medo impera, não dá muito resultado apontar falácias num discurso como o da redução da maioridade penal. O argumento dessas pessoas é da forma “se fosse com você, queria ver”. Elas estão tão cansadas, desesperadas e ressentidas que qualquer paliativo é bem-vindo. Falta a boa parte desses 93% uma alfabetização política consistente, que as sensibilize tanto quanto as esclareça; que a responsabilidade pela implementação do ECA deve ser dividida entre as três esferas da administração pública. Eu me arrisco a dizer que esses 93% deveriam botar, em suas cabeças de vento, que não se faz boas leis apelando para o senso comum; que, se fosse pelo senso comum, Osvaldo Cruz não teria contribuído com uma das maiores campanhas sanitaristas do País; que não é o senso comum que produz um Paulo Freire ou um Leonardo Boff. Porém, enquanto eu gasto tempo escrevendo este texto, elas preferem entorpecer os sentidos assistindo, ouvindo ou lendo a imprensa marrom (ou fazendo qualquer outra atividade). Meus pêsames.
Um lembrete: esses pontos acima devem ser considerados a partir de um entrelaçamento estrutural; nenhum deles, aparentemente, é decisivo por si só (embora um deles possa saltar mais à vista dependendo do contexto). A PEC 171/93 passou ontem na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, com 42 votos a favor. A luta desses 42 deputados, agora, é aprovar a proposta e seguir adiante até o Senado. Mas a notícia do Congresso em Foco solta a seguinte pérola: a PEC só prevê redução da maioridade penal para crimes hediondos. Apenas. Não tenhamos medo: a PEC não prevê nivelamento por baixo, isto é, abaixar pra 16 anos a maioridade penal pra todos os crimes.
Eu tinha dito que ia ficar no terreno da especulação. É um terreno difícil, movediço e pantanoso. Corro risco, assim, de afundar em minhas próprias especulações. Por isso, saindo da proposta inicial, não posso deixar de me lembrar de Peter Singer, que discute em sua “Ética Prática” um argumento interessante de Jonathan Glove. Basicamente, existe um vilarejo pobre com 100 habitantes, cada um dos quais se alimentando de 100 grãos de feijão por dia. Aí um bando de ladrões saqueia o vilarejo e leva os feijões. Todo mundo passa fome. Aí um assaltante, com a consciência pesada, argumenta com seus pares que isso é injusto; a partir daí, outro propõe que, no próximo assalto, eles levem apenas um grão de feijão por pessoa assaltada, com base na ideia de que o prejuízo seria mínimo e imperceptível. Eles vão, executam a proposta, e saem de consciência limpa. Nada pior poderá acontecer aos habitantes do vilarejo, certo? Errado – eles continuam com fome, assim como no outro assalto. Pois bem: acontece a mesma coisa com a redução da maioridade penal. Seus defensores atacam apenas uma parte ínfima do problema, na promessa de que seria uma solução eficaz. Querem alterar apenas uma cláusula- pétrea – da Constituição. Que atitude nobre da parte deles! Os 93% podem seguir no dia a dia com aquele adágio esfarrapado: rouba, mas faz. O que pode dar errado, né?
Update (02 de abril de 2015): parando pra ler a PEC a partir de uma notícia da Fórum (9), vejo uma das inspirações da proposta: a Bíblia. Mais precisamente, o Velho Testamento, com todas as contradições que apresenta e o anacronismo da proposta. Uma professora argumentou em meu Face que existe um argumento mais importante e contrário à redução da maioridade penal: a advertência de Jesus quanto ao tratamento dispensado às crianças – ou seja, do Novo Testamento, que deveria ser, em tese, a inspiração da atitude cristã. “‘Deixem as crianças vir a mim. Não lhes proíbam, porque o Reino de Deus pertence a elas. Eu garanto a vocês: quem não receber como crianças o Reino de Deus, nunca entrará nele’ (Lc. 18, 16-17)”. Eu me solidarizo com ela quanto à força dessa ideia, mas as práticas políticas da bancada evangélica se coadunam com o ideário e as práticas políticas da maior parte dos cristãos (independente da linha seguida), que dependem largamente de uma atitude política conservadora. É responsabilidade dos próprios cristãos reverter esse quadro, reagindo contra esse ideário e escolhendo representantes com uma visão ecumênica da política (como o Boff que mencionei acima, por exemplo, ou Frei Betto). É redundante dizer, mas isso não vai mudar de uma hora pra outra.
(1) https://18razoes.wordpress.com
(2) http://negrobelchior.cartacapital.com.br/2015/03/30/18-razoes-para-nao-reduzir-a-maioridade-penal/
(3)www.https://https://https://https://https://https://https://cartapotiguar.com.br//wp-content/uploads/2024/05/temp-podcast-05-2.png.com.br/novo/wp-content/uploads/2024/07/morro-do-careca-2.jpg.com.br/novo/wp-content/uploads/2024/05/temp-podcast-05-2.png.com.br/novo/wp-content/uploads/2024/07/morro-do-careca-2.jpg.com.br/novo/wp-content/uploads/2024/07/morro-do-careca-2.jpg.com.br/novo/wp-content/uploads/2024/07/morro-do-careca-1.jpg.com.br/novo/wp-content/uploads/2024/07/morro-do-careca.jpg.com.br/2015/04/01/a-reducao-maioridade-penal-como-vinganca-social-ou-porque-ela-nao-funciona/
(4) http://www.cartacapital.com.br/sociedade/reducao-da-maioridade-penal-esta-proxima-de-se-tornar-realidade-9936.html
(5) http://juventude.gov.br/juventude/noticias/pastoral-da-juventude-do-meio-popular-divulga-carta-sobre-reducao-da-maioridade-penal#.VRxOWfzF9GQ
(6) http://www.cartacapital.com.br/politica/bancada-da-bala-pode-ajudar-aecio-a-aprovar-reducao-da-maioridade-penal-822.html
(7) http://www.cartacapital.com.br/sociedade/violencia-brasil-mata-82-jovens-por-dia-5716.html
(8) http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/06/11/mais-de-90-dos-brasileiros-querem-reducao-da-maioridade-penal-diz-pesquisa-cntmda.htm
(9) http://www.revistaforum.com.br/blog/2015/04/biblia-e-a-principal-fonte-que-embasa-a-pec-da-reducao-da-maioridade-penal/