O famigerado e um tanto cansativo debate sobre “a família” voltou à tona nas últimas semanas, reacendido por dois episódios; o primeiro, embora surpreendentemente real, parece ficção e, o segundo, sendo ficção provocou uma reação lamentavelmente real. Refiro-me ao desarquivamento e a recriação de comissão para discutir o “Estatuto da Família” (Projeto de Lei 6583 de 2013) pelo presidente da Câmara de Deputados Eduardo Cunha e ao beijo protagonizado pelas atrizes Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg no primeiro capítulo da novela “Babilônia”, da TV Globo.
O chamado “Estatuto da família” prevê em seu 2° artigo a definição da “entidade familiar como núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher (grifados no próprio texto, no final do texto o link), por meio do casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer um dos pais e seus descendentes”. Em outras palavras, pretende-se considerar “família”, com toda carga de direitos (benefícios previdenciários, herança, direitos de guarda e visita, autoridade para opinar em casos de doença, etc.) e de prestígio social que esta instituição implica e carrega em nossa sociedade, somente os vínculos formados por um casal heterossexual, composto por um homem e uma mulher. Na estreita e impositiva definição que o Projeto de Lei propõe estariam fora do “sacrossanto” universo da família, os casais homossexuais, constituído por dois homens ou duas mulheres.
O empenho parlamentar conservador e a reação moralista de parte do público para “defender os usos, costumes e tradições da sociedade brasileira”, no caso a instituição família, já são por si só um sinal de uma derrota anunciada. De todo o modo, há questões importantes a serem devidamente debatidas e colocadas em seus termos. Afinal, os dois episódios levantam um problema relevante, qual seja, as formas de relacionamentos e parentalidade que devem ser legitimadas e reconhecidas pelo Estado e pela sociedade.
De antemão, penso que não deveríamos aceitar com tamanha naturalidade que o Estado defina que formas de arranjos afetivos, interpessoais e parentais podem ser ou não considerados como “família”. Não sem um debate aprofundado com a sociedade e uma problematização crítica das implicações das definições e limites que se almeja traçar. Talvez, dita definição devesse dizer respeito somente aos indivíduos e os sentidos que eles atribuem aos seus relacionamentos e vínculos com outros indivíduos. Por outro lado, o Estado, nas sociedades contemporâneas, é uma arena social e política imprescindível para as minorias, pois nele se trava importantes disputas para definir normas sociais de reconhecimento e proteção legal. Seria um erro abdicar por completo desse espaço e seu potencial civilizatório para interpelar a sociedade e seus preconceitos. No entanto, há uma violência embutida nesse tipo de pretensão normalizadora que faz com que, quase sempre, a norma e a lei sustentem a legitimidade de determinadas relações em oposição e com hierarquia a outras formas afetivo-sexuais de associação, consideradas, com efeito, ilegítimas.
A norma não acompanha a dinamicidade e pluralidade das relações humanas, de sorte que, a um só tempo, ao aceitar o poder simbólico do Estado em definir o que é legítimo em matéria de arranjos afetivos e parentais, restringimos, muitas vezes numa subserviência pouco refletida e conveniente, o campo das possibilidades relacionais, assegurando assim continuamente a necessidade de ser, nesta matéria, sempre sancionado pelo Estado e a possibilidade da exclusão (de relacionamentos poliamorosos de 3,4,5 ou mais pessoas, por exemplo), mesmo que seja daquelas formas de relacionamento que não foram ainda inventadas e experimentadas. De qualquer forma, nesse embate entre o legítimo e o ilegítimo, o que está em jogo no caso do “Estatuto da família” é a tentativa de construir uma legitimação restrita e exclusiva a partir da supressão de sentimentos, projetos e histórias de pessoas concretas e seus modos de ser, desejar e compartilhar afetos, cuidados, prazeres e expectativas de vida. E isso não pode ser tolerado. Prossigamos.
As mudanças dos arranjos familiares e conjugais são uma realidade escancarada contra a qual é inútil espernear. Elas estão nas ruas e nas casas das pessoas tidas como as mais “normais”. Estão em “nossas famílias”, fazem parte da vida de nossos “parentes” e amigos. E aqui não me refiro aos homossexuais. Refiro-me aos próprios defensores da “família tradicional” e à vida dos heterossexuais. Ora, se é para falar em termos históricos, quem primeiro começou a “destruir” a dita “família tradicional”, nuclear, formada por dois adultos (homem + mulher) casados mais filhos, foram os próprios heterossexuais.
O século XX foi prenhe de mudanças geradoras de um alargamento e remodelamento significativo no conceito de “família”, fazendo com esta tivesse que assumir irremediavelmente novos formatos, admitisse novas regras, práticas e representações. Vejamos: o direito e expansão do divórcio, o aumento do concubinato e da coabitação, a monoparentalidade, as uniões estáveis, os nascimentos fora do casamento, as famílias adotivas, a inseminação artificial, as famílias recompostas com filhos de outros casamentos e/ou uniões, os casais sem filhos, a gravidez na adolescência e na maturidade, foram e continuam a ser forças decisivas e cada vez mais disseminadas que mostram o quanto a pretensa noção unitária de família como sendo composta por um homem, uma mulher, casados, mais filhos é extremamente frágil, inconstante e particular. Ao longo da vida, um mesmo individuo pode, em sua trajetória biográfica, passar por diferentes formas de conjugalidade e estabelecer diferentes vínculos de filiação e parentesco. A família é, com efeito, uma instituição plástica e relacional, afinal, para surpresa de algumas mentes intransigentes, ela é uma instituição profundamente social, e não um dado da natureza, imutável e que admitiria tão somente um único modelo. Pelo contrário, existem diversos modelos de família, quer tomando outras culturas como exemplo quer a nossa própria sociedade, pois se trata de uma instituição sujeita e permeável às forças modeladoras das mudanças econômicas, demográficas, sociais, culturais e tecnológicas produzidas pelos seres humanos em sociedade. O “Estatuto da Família” busca restringir o universo plural da experiência familiar e amorosa em nome de um ideal de família, e, desse modo, vai contra a própria realidade.
Nesse sentido, as relações afetivo-amorosas homossexuais e os arranjos conjugais e familiares que eles tentam constituir e ver reconhecidos como legítimos são apenas mais um desdobramento desse processo histórico de transformação das relações de intimidade, o qual teve profundos impactos sobre a lógica e a estrutura da formação do vínculo familiar, assim como sobre as funções, relações e funcionamento das famílias. Transformações que o sociólogo inglês Anthony Giddens afirma se sustentarem na tendência de valorização da satisfação intrínseca das relações e no surgimento de uma “sexualidade plástica”, quer dizer, uma sexualidade vivenciada livre do imperativo da reprodução e mais ligada à autonomia e projetos de autorrealização dos indivíduos. Em síntese, as famílias contemporâneas baseiam-se na satisfação e suporte emocional e material que as relações afetivas de seu interior e entre seus membros podem proporcionar a cada um dos membros (cônjuges, filhos, etc.) para que eles, individualmente, possam alcançar e usufruir de seus projetos de autorrealização pessoal. É isso o que constitui, nas sociedades urbanas atuais, uma das principais motivações que conduzem os indivíduos, héteros e homossexuais, ao desejo de formar uma família, assim como desfazê-la, refazê-la e interrompê-la ao longo de sua trajetória biográfica.
A restrição discriminatória promovida pelo “Estatuto da Família” significa afirmar que existem pessoas que, por suas preferências sexuais, não são capazes nem merecem construir uma família ou cuidar e criar filhos. Ou seja, elas não possuiriam as aptidões morais e psicosociais que se consideram como socialmente habilitadoras para exercer legitimamente as funções atribuídas à instituição familiar. Desse modo, além da perda de direitos relativos a tais funções, elas estariam, num plano simbólico, sendo privadas de serem plenamente cônjuges e pais. Acreditar que existe alguma correlação entre preferência ou orientação sexual e constituição de uma família emocionalmente saudável é não apenas um grande equívoco, mas um desrespeito à dignidade das pessoas. É um grande equívoco porque reduz, por exemplo, a constituição de uma família com filhos à capacidade inata de procriar biologicamente os mesmos, quando, na verdade, o verdadeiro e vital esforço que define ser família é o esforço conjunto para produzir social e psicologicamente a criança, isto é, a tarefa de socializá-la e educá-la afetuosa e saudavelmente.
A exclusão que os setores conservadores almejam operar com o “Estatuto da Família” exprime um evidente e cruel rebaixamento moral da condição de cidadania e humanidade dos homossexuais com o objetivo de mantê-los como cidadãos de segunda categoria. Ao negar o reconhecimento da dimensão familiar que os relacionamentos amorosos homoafetivos podem pretender, as implicações práticas podem ser extremamente prejudiciais aos pais gays e mães lésbicas. Sob a compreensão de família que o Estatuto almeja sancionar ocorrerá uma redução dos direitos conquistados e legitimados pelo Poder Judiciário, como a união homoafetiva e a adoção. Mais ainda: em litígios familiares de guarda dos seus próprios filhos, do direito de visita ou do exercício da autoridade paterna a tendência é que a justiça decida contra o pai ou a mãe homossexual. Nesse sentido, todo o esforço emocional e os investimentos afetivos e materiais, com seus conflitos e tensões, para criar uma estabilidade emocional e uma atmosfera de segurança e gratificação existencial que milhões de homens e mulheres despenderam e despendem diariamente em seus relacionamentos amorosos estariam sendo simplesmente ignorados e menosprezados pelo Estado e pela sociedade. Por isso, a despeito do posicionamento crítico que temos de manter diante da pretensão do Estado em definir a noção de “família”, não podemos admitir, por outro lado, o desrespeito social e a violência simbólica e discriminatória implicadas em tal Projeto de Lei.
O reconhecimento da legitimidade da homoparentalidade está dentro do rol de liberdades pessoais que foram impulsionadas pelas transformações da intimidade nas sociedades modernas. Defendê-la é aprofundar as liberdades e condições subjetivas que nos asseguram, a todos, o direito de expressão pessoal sobre os antigos imperativos sociais da tradição. A homoparentalidade trata-se de uma das modalidades possíveis de família, pois, se por “família” entendermos o espaço emocional vinculativo que une indivíduos que se engajam no exercício constante de compartilhamento de afetos e cooperação mútua para autorrealização de seus membros não há razão alguma que justifique a exclusão da conjugalidade e parentalidade homossexual da noção de entidade familiar.
Em um Estado democrático, não há espaço para privilégios jurídicos para uma categoria específica de pessoas. Portanto, assim como esse princípio é verdadeiro quando se trata de uma determinada religião, classe ou raça, ele também é verdadeiro quando se trata de não privilegiar uma forma de sexualidade em particular. Às discriminações já existentes e persistentes contra os homossexuais não podem se somar discriminações legislativas e jurídicas.
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Link para Leitura do Projeto de Lei 6583
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1159761&filename=PL+6583/2013