Eu entrei no futebol quase que por acaso. Quando garoto, batia minhas peladas no campo de terra batida da escola do bairro pobre onde nasci e fui criado. Divertia-me muito. No time da escola eu era o camisa 10. Os amigos sempre pelejavam para me ter na linha deles. Evidente que eu tinha aquele sonho que todo jovem tem, de ser jogador de futebol, ser reconhecido, ganhar dinheiro. Mas eu nunca idealizei que iria conseguir. Nunca, até que um dia um sujeito moreno, de fala enrolada e uma das pernas tortas, viu-me jogar e fez-me um convite para treinar num time grande da cidade. Naquele dia vencemos por seis a zero. Eu fiz seis gols.
No novo time, comecei a jogar avançado. No juvenil, o treinador queria que eu me adaptasse jogando de atacante. Mas eu sabia que meu lugar era mais atrás. Fui recuado para o meio e acabei assumindo a camisa 8 quando finalmente fiz minha estreia no time principal. Não demorou muito, ganhei meu primeiro título. Campeão Estadual com direito a um chocolate em cima do maior rival. Meu sonho de ser jogador estava se realizando.
Os anos foram se passando, conquistei a titularidade e o torcedor já me reconhecia nas ruas. Dei até autógrafo, quem diria. Muito bom para quem mal sabia escrever. Tive a ajuda de um cunhado pra aprender a escrever meu apelido famoso. Eu estava muito feliz, mas eu queria ainda mais. Estava crescendo. Eu sentia na pele meu sonho se realizando. Comprei uma casinha no bairro e não faltavam comida e bebida na mesa. Meu sonho de ser jogador estava quase realizado.
E a minha carreira não parava de crescer. Na segunda temporada de profissional, tive a felicidade de jogar contra os melhores jogadores e times do Brasil. Conheci cidades e pessoas que só via pela televisão. Eu nunca pensei que iria chegar tão longe. Mas Deus foi muito bom comigo. Ele me presenteou com o dom da bola. No ano seguinte, fiz o gol do título mais importante da história do clube. Meu nome estava definitivamente assinado na memória dos torcedores. Eu estava flutuando nas nuvens. Meu sonho de ser jogador estava realizado.
Que alegria! O futebol era a minha vida. Acho que se eu morresse e tivesse outra chance de vir ao mundo, seria jogador novamente. Nunca pensei em exercer outra atividade – na verdade nunca aprendi, desisti dos estudos – até porque o futebol dava-me tudo que eu precisava pra viver bem. Eu era um ídolo.
Mas os anos foram se passando e a idade chegando. Meu preparo físico não era mais o de antes. Depois de rodar o país em alguns clubes conhecidos e outros nem tanto, voltei pra casa. Decidi pendurar as chuteiras. Eu não precisava mais. Já estava com a vida feita. Nos primeiros anos eu vivi bem e com folgas. Aproveitei cada centavo conquistado com meu suor. Usei e abusei. Eu tinha um carro do ano, uma mulher bonita e muitos amigos. Minha vida seguia um roteiro de filme americano.
Mas todo filme tem sua cena final. Com o tempo, percebi que meus amigos estavam ausentes. Tudo que eu ostentava estava se transformando apenas em histórias do passado. Eu estava desempregado e não recebia mais aquele salário gordo no fim do mês. Não havia mais a torcida na arquibancada gritando meu nome. Eu não era mais o melhor camisa 8 da cidade. As lembranças dos gols que fiz eram agora como um orgasmo com uma mulher da vida, que no final do ato te deixa sozinho e pula no colo de outro craque no salão. Acho que acordei tarde daquele sonho de criança. Aquele sonho de ser jogador. Mas o que importa mesmo é que eu acordei pra vida. Não uso mais o apelido que me consagrou nos gramados, mas tenho meu nome civil no crachá. Eu, aquele camisa 8 que marcou o gol mais importante da história do time da cidade, agora sou o porteiro da escola do bairro onde dei meus primeiros chutes na bola.