Durante algum tempo convivi com sobreviventes de guerra. Conheci também seus filhos, descendentes de sobreviventes de guerra. Umas das coisas que mais chamava atenção nessas pessoas era a forma como alimentavam-se. Ao final da refeição, sempre, o prato estava brilhando. Usava-se, por exemplo, o pão para raspar até o óleo que ficava no da louça. As migalhas de pão e bolachas eram colhidas com a pontas dos dedos e levadas à boca. Não era permitido estragar nada. O passado de terror recente (a guerra) fez com que um bem específico (a comida) passasse a ser muito valorizado devido sua escassez.
Todos nós, sobreviventes de guerra ou não, crescemos ouvindo que “não devemos desperdiçar comida”. Mais que isso, nossos pais sempre nos ensinam que “existe muita gente no mundo passando fome, não podemos desperdiçar nada”. É normal, inclusive, encontrar restaurantes que cobram do cliente uma “taxa de desperdício’, reforçando a ideia de que não devemos estragar alimentos.
Sem dúvida alguma o caráter educativo ideia é exelente, mas o argumento utilizado para mantê-la é um erro que repetimos diariamente sem nos darmos conta e tal erro pode esconder uma série de processos de reprodução da desigualdade social.
Muitas pessoas passam fome no mundo por falta de comida. Porém, especificamente no Brasil, ninguém passa fome devido “a falta de comida”. A comida na nossa nação estraga-se, jogamos para cima, damos aos porcos. Ninguém passa fome por falta de alimento. Passa-se fome por falta de dinheiro para comprar alimento, o que é bastante diferente. Neste sentido, a “educação para não estragar” serve como uma camuflagem, transformando um problema de ordem social em algo de ordem natural.
Com isto não quero dizer que devemos desperdiçar. De forma alguma. Não desperdiçar é a base para o desenvolvimento de uma sociedade sustentável. Mas não podemos continuar a repetir um argumento que transforma em “natural” um problema criado pelo ser humano. Não é a natureza a responsável pela não alimentação de alguns, mas sim os padrões éticos e morais da ordem social vigente. Por mais que todas as pessoas no Brasil parassem de estragar alimentos, ainda assim teríamos um exército de famintos, já que continuariam a não ter condições de adquirir a alimentos para sua subsistência. Ou seja, mais uma vez, a explicação para a “pobreza” do mundo recai sobre o indivíduo. “A culpa da fome é sua que desperdiça comida”. A culpa da fome nunca é do atual modelo, que mantém, por exemplo, propositalmente taxas de desemprego para garantir baixos salários entre outras formas mais de perpetuar a pobreza e a miséria no país.
A luta não deve ser apenas pelo “não desperdício”, mas pelo não desperdício e pela distribuição de renda.