O intolerável peso da feiúra: entrevista com psicanalista Joana Novaes
A pesquisadora e psicanalista Joana de Vilhena Novaes nos concedeu esta entrevista em 11 de novembro de 2014, em seu próprio consultório (Leblon – RJ). Com o intuito de abordamos tema bastante inquietante da sociedade contemporânea: a ditadura da magreza, doenças da beleza, as idealizações do corpo perfeito, o corpo como capital e símbolo de status, a construção dos estereótipos imagéticos discursivos difundidos à todo instante por uma indústria publicitária inescrupulosa.
Reconhecidamente pioneira nas investigações deste tema, também aborda as subjetividades diante das pressões pela busca de aceitação e aplauso a partir do idealizado e inatingível corpo perfeito.
Joana de Vilhena Novaes é psicanalista, pós-doutora em Psicologia Médica e Psicologia Social (UERJ); doutora em Psicologia Clínica (PUC-Rio); coordenadora do Núcleo de Doenças da Beleza (centro de pesquisa e atendimento psicológico) da PUC-Rio. Autora dos livros O intolerável peso da feiúra (Editora PUC-Rio/Garamond, 2006), Com que corpo eu vou? (Editora PUC-Rio/Pallas, 2010) e Corpo pra que te quero: usos, abusos e desusos (organizadora junto com Junia de Vilhena ,2012).
1-A partir de que momento o corpo passa a ser historicizado?
Joana Novaes: A partir da antropologia moderna, que é tributária à psicanálise, quando vê o corpo como construção social e de processo de socialização, vão surgir uma série de técnicas de práticas corporais que ensinam que corpo nós devemos ter, que o adestra de tal maneira. Que nos ajuda a identificar e mapear o sujeito socialmente. A partir desta perspectiva fica claro que o corpo não é naturalizado. Conforme Foucault, surgem prescrições e práticas médicas/higiênicas que começam a servir como forma de controle dos corpos.
2-Em sua obra é muito presente a percepção do corpo como construção social.
Joana Novaes: Trabalho muito com a questão da regulação social do corpo, conceito que está muito presente em meus artigos, a forma como se decodifica o corpo que está bem presente na cultura do corpo como capital. Conceito que nos ajuda a pensar a severidade dos julgamentos morais se dão no imaginário social. Faz par com a ideia de normatizar a vida cotidiana, moralização da beleza. Fiz menção aos antropólogos, pois o tem-se o corpo como ferramenta mais sofisticada para aferir, para entender uma cultura e valores de uma sociedade. Importante entender a regulação social (patrulha) e a compreensão do sujeito contemporâneo que acaba por incorporar/introjetar a mesma (reproduz acriticamente), sem precisar de um controle externo. Fazendo com que o sujeito (acanhado, constrangido) com culpa pela sua aparência e tenha sempre uma sensação de insuficiência e um débito, que não é pago nunca. Quando a beleza passa a ser um dever: tudo girando da estética.
No caso específico das mulheres (maioria que nos procura na clínica), observamos o quanto que a beleza corporal é uma importante marca identitária: a busca do corpo belo e magro para ser aceito, não sofrer as exclusões e ser visto como bem-sucedido.
3-Sua abordagem é bastante interdisciplinar (história, antropologia, psicanálise, sociologia, filosofia) em suas obras. Fale sobre a construção de seus questionamentos com base nessas referências.
Joana Novaes: Sou psicanalista e também formada em psicologia. Quando fui despertada pela investigação da importância e valor da aparência, o que a imagem corporal assumia na sociedade contemporânea (o uso deste corpo aqui na zona sul carioca), importância do corpo como forma de sociabilidade. Senti falta de autores (na psicologia e psicanálise) que trabalhassem como o sujeito trabalha subjetivamente sua imagem corporal, como constrói sua identidade. Fui buscar (já durante a conclusão do curso de graduação) o porque desta valoração excessiva do culto ao corpo, da imagem, necessitei de referências sociológicas e antropológicas para construir questionamentos.
Para este tema foi muito necessário busca de um saber diversificado, pois o Programa de Pós-Graduação (Mestrado Profissional e Doutorado em Psicanálise, Saúde e Sociedade – Universidade Veiga de Almeida – RJ) que faço parte está inserido neste diálogo de vários saberes.
Cito alguns dos autores que utilizou em minha pesquisa: Jurandir Freire, Pierre Bourdieu, José Carlos Rodrigues, Courtine, Da Matta, Strozemberg, Jean Baudrillard e é claro Sigmund Freud.
Hoje já se têm boas referências teóricas sobre o tema. Fico satisfeita em ter sido uma das pioneiras no campo de investigação deste fenômeno. Lembro que a partir de uns vintes pra cá que começou a ter-se um grande número de publicações relacionadas à este tema, a corpolatria como um importante sintoma social: aparência que pode criar prejuízo ou facilidades para o sujeito em seu convívio. Gratificante ter dado esta contribuição para um rico corpo teórico, pois existia dificuldade com meus pares, com orientadores, as bancas avaliadoras (Mary Del Priore fez parte de uma delas).
4-Em sua obra você se refere ao Rio de Janeiro como uma “Meca”: um cenário perfeito para observações e questionamentos. Em “Com que corpo eu vou?” você faz rica pesquisa de campo, captando as sociabilidades e implicações tanto da mulher de classe média alta quanto da que vive em comunidades, periferia e favelas.
-Joana Novaes: O Rio de Janeiro é um de referência nacional por privilegiar a exaltação da beleza física, conjuga inúmeros fatores, como por exemplo, uma mídia que o exalta como a hollywood brasileira, e espelhar muito para outros lugares do país. Vai estimular estereótipos em torno da estética corporal, etc. Claro que quando falamos em Rio de Janeiro como referência, estamos nos referindo à Zonal Sul e não Baixada Fluminense.
Esta obra é resultante de um pós-doutorado. Pesquisa iniciada com o trabalho clínico feito com mulheres obesas (de classes populares) no hospital da UERJ. Se olharmos atentamente para as classes populares, podemos captar que não há um velamento, o corpo é mais exposto sem constrangimento. Claro que existe preocupação com os padrões, mas a disciplina e padronização se dão de outra forma: o corpo forte é ligado à prosperidade, muito magro confunde-se com muito pobre. O acesso à alimentação mais “sadia” é limitada pela condição econômica e a prioridade é a saciedade. Em nossa sociedade é caro ser magro.
A avaliação moral da gordura é outra, inclusive com a questão da sexualidade de um corpo que não é tão aprisionada por cobranças tão mais fortes que da mulher da classe abastada.
Pois com as mulheres da classe média alta a relação com o corpo é muito mais tirânica por conta da vergonha e ocultamento: revelado nos discurso que quando se esta acima do peso este corpo não pode frequentar determinados lugares como a praia (que não é um lugar tão democrático assim, existem determinados códigos e mapeamentos).
5-A psicanálise é uma forte referência em sua pesquisa, quando se propõe à dar voz aos sujeitos, suas implicações e estigmas dos corpos que carregam.
Joana Novaes: As pesquisas foram iniciadas paralelas aos meus atendimentos iniciais na clínica social da PUC (RJ), que proporcionou-me fazer um importante mapeamento a partir do material trazido pelas pessoas que atendia. E a insatisfação com o corpo sempre aparecia em meio à tantas queixas que estavam presentes nos discursos: o corpo como um importante capital de inserção social de seus cotidianos (“sou avaliado pela minha aparência e isso gera em mim uma avaliação moral bastante depreciativa”).
O pesquisador categoriza e organiza o material colhido para seu trabalho. Tento como psicanalista, num trabalho “arqueológico” captar esta cultura através do o que está nas entrelinhas das falas dos sujeitos. Curiosamente sujeito com superego tirânico, numa cultura de narcisismo que não permite defeitos. Pois de uma das pessoas que entrevistei (uma mulher negra, bastante acima do peso) que dizia: “Sei que preciso perder peso mas não é apenas pela saúde, caso emagreça serei tratada e recebida de uma maneira diferente”. Capta-se em discurso o ideal de beleza de acordo com o corpo branco e magro.
6-Um importante autor para compreensão do mal-estar contemporâneo, Zygmunt Bauman, também aborda as compulsões. Que incluem os transtornos alimentares (bulimia, anorexia). Fale sobre estes transtornos.
Joana Novaes: Não são transtornos que atinge apenas os ricos. A bulimia tem mais haver com a sociedade de consumo (onde tudo se converte em objeto mercadológico) observamos todo tipo de comida sendo oferecida, nunca se comeu com tanta facilidade. Um curioso paradoxo: nunca se ofereceu tanta comida, como também nunca se exigiu tanta privação como na contemporaneidade. Tem-se oferta em demasia e ferramentas compensatórias para perder peso e tentar entrar em forma. No fim, todos correndo atrás de um ideal estético inatingível e gera muito sofrimento psíquico (o sentir em débito, insuficiente, etc.).
7-Questão fundamental do tema é também a existência da criação de estereótipos imagéticos discursivos promovidos por uma poderosa indústria publicitária que investe alto nos padrão estético corporal.
-Joana Novaes: Existe um número muito grande pessoas vulneráveis que olham e consomem as imagens oferecidas por esta indústria e acabam por se sentirem miseráveis, por não corresponderem ao o que é oferecido. São objetos fálicos (fama, beleza, poder) através do consumo, pois são criadas áreas de ilusões (onde indivíduo se perceber e se vê, mas de forma limitada) muito comprometedoras: “se comprar tal coisa serei feliz”.
No caso específico do corpo, que será o principal capital e objeto de investimento na busca do ideal de beleza imposto para todos. Causador de importantes implicações, narcisismos e adoecimentos psíquicos, etc.
8-Flávio Gikovate (psicoterapeuta paulista) ao abordar a contemporaneidade, também faz referência a esta necessidade imperiosa de ser visto, de receber aplausos. As redes sociais corroborando tudo isso. Como você vê esta questão.
Joana Novaes: Com a questão da virtualização da vida, temos que entender as subjetividades que estão sendo produzidas a partir disto. Tem o afastamento das pessoas e não necessidade da presença e interatividade. Mesmo sendo seres relacionais, precisamos muito do outro, porém, cada vez mais nos afastamos.
Veja: se o indivíduo, em sua constituição, tem poucos suportes internos de sustentação irá buscar estes suportes externamente, expondo sua vida pessoal nas redes sociais, necessitando de uma plateia constante (um esboço de ego que não se consolida). Preciso mensagens externas reiterando que eu sou alguém! A vida só ganha sentido a partir destes olhares externos. As atividades mais prosaicas (como almoçar, por exemplo) passam a não “existir” se não for exposto para os outros. O CORPO É UMA PLATAFORMA, uma tela, então impõe a marca no corpo ou nas redes sociais. Está cada vez mais difícil de os indivíduos contemporâneos criarem significados consistentes internamente.
Situação muito grave em redes sociais: jovens que partilham qual o alimento que deve ser consumido e como consumir. Objetivando um tipo de corpo para resultar em aprovação coletiva e meta alcançada (corpo belo, branco e magro). Dimensão estética transformada em ética.
Para saber mais sobre o trabalho de Joana de Vilhena Novaes: http://www.joanadevilhenanovaes.com.br/