Diego José Fernandes Freire (professor de história)
Conta-nos uma anedota do Brasil imperial que dois assaltantes, após invadirem na calada da noite o palácio imperial de D. Pedro II, titubearam diante da coroa real: um queria levar o objeto realesco, dado o seu caráter extremamente valioso e rentável, ao passo que o outro não, pois tratava-se de um artefato familiar, um bem hereditário. Enquanto discutiam o que fazer, os guardas do paço de São Cristovão chegaram e evitaram o furto. Triste fim para os ladrões confusos, que acabaram ficando sem a coroa real e ainda presos. Há nos golpistas desta historieta um traço marcante do século XIX, a saber, a valorização da história. Ambos os ladrões – aquele que queria furtar e aquele que queria “deixar” a coroa real – intuíam o valor do objeto, tinham consciência de que se trava de algo diferente e especial. Os ladrões do século XXI parecem não ter mais a mesma consciência histórica.
Em menos de um ano, o museu Café Filho, sediado no centro da cidade de Natal – RN, foi assaltado duas vezes. Em abril do ano passado, ocorreu o primeiro assalto, do qual resultou o furto de uma extensão elétrica e de um gaveteiro antigo. No último dia 11 deste mês, nova invasão, só que dessa vez bem mais grave: os ladrões, ao que tudo indica, passaram vários dias no estabelecimento cultural. Dessa estadia ilegal no museu, houve a subtração de um lustre de cristal (proveniente da República Tcheca), de portas e de uma TV de 29 polegadas. Por pouco não levaram um baú do começo do século passado. Ambos os roubos foram favorecidos pelo fato de que, desde 2009, o Sobradinho, conforme é localmente conhecido o museu, encontrar-se fechado, dada uma reforma que se arrasta já há mais de 6 anos.
Não bastasse o furto dos itens mencionados, os últimos assaltantes aproveitaram a invasão para realizarem outras práticas. Segundo algumas notícias, foram encontradas no museu, mais precisamente na cama de uns dos quartos, algumas cuecas e calcinhas, bem como preservativos e cigarros. Uma verdadeira farra foi realizada nas instalações do prédio histórico. De museu, o Véu de Noiva – outro nome que alguns natalenses dão ao museu Café Filho – foi transformado em motel, em cenário para corpos ensandecidos preocupados unicamente com o presente, com o momento, totalmente alheios ao passado. À revelia da história, a cama de Café Filho deixou de ser objeto para contemplação e virou momentaneamente palco para casais despreocupados.
Tal fato presta-se para pensarmos na maneira como a sociedade natalense atual está a se relacionando com a sua história, com o seu passado. Que importância dão os natalenses a sua história? Estamos cuidando efetivamente do nosso passado citadino? O que estamos fazendo pela história de Natal? Perguntas como estas, por mais incômodas que pareçam, precisam ser feitas todas as vezes que casos como os narrados mais acima acontecem. Uma sociedade que não valoriza a sua história, que não cuida de seu patrimônio histórico, está fadada a ver crimes contra o seu passado. Esta temporalidade, uma vez re-apresentada em um espaço específico (como o museu) e ressignificada como um elemento importante (como a história de um citadino ilustre), necessita de atenção, de administração, de zelo. Recursos humanos e materiais precisam ser direcionados para a boa gerência de estabelecimentos que pretendem preservar uma dada história. Infelizmente, parece que este não é o caso do museu Café Filho.
O dito prédio, construído entre 1816-1820, que representa a primeira construção particular assobradada da história da cidade de Natal, tombado como patrimônio desde 1965 e tornado sede do museu Café Filho desde 1979, encontrava-se, no momento da invasão, desprotegido, sem nenhum segurança. Tal “desproteção” parece ser algo corriqueiro. Um policial que faz a segurança na Assembléia Legislativa (prédio que fica próximo ao museu), mas que preferiu não se identificar, disse que não foi a primeira vez que criminosos invadiram o local:
“Eu mesmo já consegui impedir um roubo no local. Os assaltantes entram por trás, onde tem um jardim. O muro ali é muito baixo. Quando o rapaz me viu, ele saiu correndo. Mas foi sorte, pois o museu não tem segurança alguma. Tanto que, dessa vez, conseguiram entrar” (Ver: http://jornaldehoje.com.br/criminosos-invadem-o-museu-cafe-filho-na-madrugada-desta-terca-feira/).
Um estabelecimento como o museu Café Filho, que palpita em história local, que conta parte da história do único potiguar que se tornou, ainda que provisoriamente, presidente da República, não poderia de forma alguma está desguarnecido pelo poder municipal. Pelo o que me foi possível averiguar, o estabelecimento cultural não conta nem com um sistema de segurança interna.
Se as autoridades competentes não cuidam da história citadina, se não zelam pelo passado da própria cidade que dizem administrar, a chance de “crimes históricos”, como os presenciados contra o museu Café Filho, aumentam consideravelmente. A valorização da história local, a consciência histórica que o filósofo alemão Hans-George Gadamer apontou ser uma situação privilegiada do mundo moderno, para estar na sociedade de uma maneira efetiva e atuante precisa estar presente também no poder municipal, naqueles que gerenciam a urbe.
A consciência história, entendida como a percepção valorativa do passado, visto como um bem que nos constitui, que diz respeito a nossa identidade, precisa institucionalizar-se de alguma forma, isto é, não pode existir unicamente e etereamente na cabeça dos indivíduos. Ela precisa ser fomentada por meio de dadas instituições, como as universidades, os institutos históricos, os museus, entre outros órgãos. E tais instituições precisam ser atuantes, elementos socialmente ativos, agentes mesmo, do contrário o passado e a história tornam-se algo embalsamado, petrificado, sem ação viva no presente. Como se vê, despertar um cuidado pelo nosso passado, criar um zelo pela nossa história, não é de forma alguma algo espontâneo, natural, algo que nasça sem uma ação organizada e consciente. Aqui reside justamente uma das funções da história, entendida como uma disciplina acadêmica: potencializar a consciência histórica dos sujeitos a fim de que os mesmos venham a problematizar o passado.
O caso do Sobradinho invadido deve servir de alerta para nossa sociedade, no que diz respeito ao nosso tratamento quanto à história da cidade de Natal. Sendo assim, repitamos aquelas perguntas incômodas: que importância dão os natalenses a sua história? Estamos cuidando efetivamente do nosso passado citadino? O que estamos fazendo com/pela história de Natal?