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Charlie Hebdo: o que pode a liberdade de expressão?

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capaPassado o auge do choque e das diferentes emoções provocadas pelo atentado e massacre na sede do semanário Charlie Hebdo, é preciso continuar a pensar as duras e nuançadas questões que, de maneira dolorosa e crua, este triste episódio reacendem. Em texto anterior, sustentei a defesa incondicional da crítica à religião, portanto, de sua sátira, por conta do papel civilizatório e histórico que dita prática possui e desempenhou para o desenvolvimento das liberdades individuais modernas. Porém, a crítica radical da religião, sobretudo a mais corrosiva e mal-educada como a realizada pelo anti-clerical Charlie Hebdo, levanta incômodas e pertinentes interrogações, especialmente num contexto repleto de tensões e contradições culturais, étnicas e políticas como a França e a Europa contemporânea em sua relação paradoxal com a imigração.

Nesse sentido, foram levantadas importantes e razoáveis objeções à prática iconoclasta do Charlie Hebdo – embora, às vezes, descarrilando para uma deslegitimação total de sua atuação. Tais objeções sustentam que o jornal e suas sátiras contra a fé islâmica e seus seguidores contribuem para o aumento da islamofobia contra os imigrantes muçulmanos, desrespeitando milhões de pessoas que vivem na Europa, e, com isso, favorecendo o crescimento da extrema-direita e reforçando os já sólidos obstáculos sociais e institucionais para a consolidação de uma plena sociedade multicultural na França e na Europa.

No aparente republicanismo e laicismo das charges do Charlie Hebdo existiria, na verdade, o sorrateiro e perigoso etnocentrismo, o sentimento colonialista de superioridade e de subalternização do outro. Pois bem, sobre esse último ponto, embora concordando que o etnocentrismo eurocêntrico é um fato, é difícil imaginar, por outro lado, nos dias que correm, algo mais etnocêntrico do que o fundamentalismo religioso, em especial o islâmico jihadista. Além do mais, se, por um lado, é verdadeiro a persistência do etnocentrismo nos mais diversos aspectos da realidade política e social do Ocidente, por outro, é igualmente verdadeiro que este mesmo Ocidente, profundamente etnocêntrico e denegador da alteridade em sua história, produziu instituições e práticas capazes de pensar, denunciar e criticar o seu próprio etnocentrismo – isto, parece-me, um relevante avanço civilizatório, que não pode ser descartado, em relação a outras épocas históricas, tradições culturais e regimes políticos que não gozavam de instrumentos institucionais e repertórios de normas e pensamentos capazes de avaliarem a si mesmas em seus excessos, equívocos e injustiças, ainda que a existência de tais instrumentos e repertórios não seja garantia de eliminação das injustiças e contradições.

Retomando: o que está novamente em discussão são os limites da liberdade de expressão e de pensamento, ou seja, até onde, em nome da crítica, da arte, da expressão do pensamento, podemos levar e publicizar nossas ideias e afirmações? Ou, mais especificamente: em nome da liberdade de expressão e de pensamento pode-se ofender e ridicularizar a fé das pessoas através de ilustrações e artigos? Aqui, quais são os limites e critérios que permitem distinguir a crítica da mensagem de ódio? A irreverência do desrespeito? A iconoclastia do estigma, e do etnocentrismo puro e ignorante? Por que a liberdade de pensamento deve ser mais “sagrada” que Maomé, Jesus, Allah ou Jeová?

Antes de qualquer coisa, deve-se ter mente que o fundamentalismo islâmico não é um fenômeno isolado cujas causas radicam unicamente no islamismo ou em aspectos culturais particulares inerentes as populações muçulmanas ou arábicas. Nem o islamismo é todo e exclusivamente fanático, outras religiões e credos não-religiosos também possuem extremistas intolerantes – os judeus ultraortodoxos, a extrema-direita européia e os grupos neonazistas não nos deixam mentir. Nos aspectos que nos interessam, é preciso entender o fundamentalismo islâmico para além dos aspectos dogmáticos e potencialmente autoritários do código religioso (Alcorão, sharia, etc.) e da interpretação literal e enviesada que fazem imãs extremistas e radicais. Os grupos e indivíduos jihadistas e extremistas na Europa são, igualmente, o resultado do modo restritivo e excludente com que a Europa, em especial a França, trata os imigrantes muçulmanos e os descendentes destes, que são, aliás, legítimos cidadãos franceses, ingleses, alemães etc., exercendo sobre eles todo um conjunto de violências e injustiças sociais que vão da violência policial, do isolamento urbano em espaços degradados, da pauperização ao que o sociólogo Robert Castel chama de “discriminação negativa”, isto é, estigmas e expectativas negativas e inferiorizadoras que são fincadas sobre sua origem étnico-cultural e que dificultam ainda mais a inclusão, aceitação e participação efetiva e reconhecida na sociedade e suas oportunidades desses indivíduos como cidadãos legítimos.

Nesse sentido, por exemplo, a sociedade que apregoa mundialmente ser a terra da liberdade, da igualdade e da fraternidade é sentida e experimentada pelos imigrantes e seus descendentes, sobretudo os mais jovens, como a sociedade que restringe a expressão de sua identidade religiosa, que os trata diferencialmente e sem paridade através da cotidiana discriminação policial e da torturante discriminação empregatícia e que, ao fim e ao cabo, acaba por rejeitá-los e abandoná-los à marginalização social e à aflição de seu próprio ressentimento. Sem esse contexto social, profundamente europeu e contemporâneo, e os sentimentos que aí brotam, não se entende adequadamente o fundamentalismo islâmico e os atos terroristas cometidos em nome do Islã em solo europeu, pois,  sob a pressão desse contexto, o islamismo extremista e radical emerge como refúgio e repertório de sentidos para canalizar e significar poderosamente todo um conjunto de emoções agressivas, ressentidas, revolta e experiências de frustração, humilhação e violência. O pensamento crítico  e livre não pode deixar de recair sobre esse nefasto contexto, compreendendo-o, condenando-o e atuando em favor de sua transformação ao preço, do contrário, de alimentar as próprias forças que implicam sua restrição e destruição.

Contudo, aceitar a influência e a força desse contexto não torna justificável perseguições, censuras, assassinatos e ataques terroristas nem, também, exime e blinda, em nome de um bom senso político e de uma pretensa visão anti-colonial, de críticas a esses grupos fundamentalistas e os elementos religiosos em que ele se apoiam para justificar sua empreitada de ódio e terror.  No caso de perseguições e ataques a jornalistas, escritores e outros intelectuais, um dos objetivos dos ataques extremistas consiste exatamente em gerar, pela imposição do medo e da má consciência de se ser “ocidental”, uma auto-restrição da liberdade da expressão e de pensamento, fazendo com que todos aceitem que qualquer visão contrária às crenças religiosas não devem ser manifestada. Não penso que seja legítimo, razoável e  seguro que fanáticos, cheios de ódio, ignorância, treinados militarmente e mais dispostos a matar e morrer por suas convicções e mitos do que serem convencidos por argumentos contrários, definam os limites da tolerância e da liberdade de pensamento e expressão que devem presidem a nossa convivência em sociedade. Compreender a gênese do fundamentalismo religioso islâmico não significa abdicar de criticá-lo, inclusive em seus fatores internos, ou seja, religiosos e dogmáticos.

Por isso, a crítica do fundamentalismo religioso e de todo aquele que faz uso da violência para se impor deve ser incondicional e sem concessões, desde que se assegure, com clareza, o que e quem é o alvo da crítica. Quer dizer, que se evite as armadilhas do generalismo e do reforço da estigmatização. A crítica dirige-se ao fundamentalismo religioso e aos extremistas religiosos, ao um modo literal e belicista de se tomar o islã, e não aos muçulmanos, aos imigrantes e ao islamismo em sua totalidade.
bentoDeus, Maomé, Allah, Jesus não passam de ideias, ainda que milhões de pessoas acreditem, com todo o direito, serem ideias verdadeiras e reais. Mas são ideias, e não pessoas. E com ideias devemos ser impiedosos, se, com sensatez e fundamento, consideramos se tratar de ideias equivocadas ou danosas à liberdade e convivência humana. Deixemos então nossa piedade para as pessoas. A crítica e a sátira religiosa somente se excedem quando desrespeitam e tentam impedir, por alguma performance qualquer, os locais de culto, quando justificam restrições à liberdade e identidade religiosa ou fortalecem intencionalmente estereótipos e estigmas generalizantes contra adeptos de uma determinada confissão. Esses são os limites. Contra ideias, não cabe temer, não cabe covardia, tutelar ou fazer concessões. Este é o preço a se pagar para se conviver em sociedades multiculturais onde cada um possa ser livre para manifestar sua adesão assim como sua discordância a qualquer corpus ou doutrina de ideias e crenças, desde que essas não contrariem e impliquem dano a garantias fundamentais (Direitos Humanos, por exemplo). Há um risco de se ultrapassar os limites? Sim, há, mas só existe liberdade se existir risco, pois a liberdade é também a liberdade de arriscar-se.

Numa sociedade multicultural que se pretende aberta, livre, equitativa e tolerante, é preciso saber lidar com a crítica e a ironia das crenças particulares, desde que não seja retirado a liberdade de se fazer o mesmo com as crenças do outro ou de contraargumentar e, até mesmo ir a justiça, se sentir-se lesado e atingido em sua dignidade e liberdade. Os religiosos devem tolerar as críticas assim como os críticos devem tolerar a expressão religiosa. Além do mais, diante das críticas e manifestações interpretadas como desrespeitosas e incômodas, pode-se escolher entre rebatê-las com as mesmas armas ou simplesmente ignorá-las e não consumi-las, por exemplo.

Desse modo, assim como o cristianismo foi e continua a ser, de diversos modos, no Ocidente moderno, o islamismo, seus valores, suas instituições e seus grupos, devem ser interpelados e submetidos à crítica e ao confronto com outros valores. O mundo islâmico e os que professam esta fé precisam aceitar os questionamentos, que, por vezes, são duros e ácidos, é verdade, mas fazem parte do jogo. Infelizmente, na história recente isso não tem sido recebido com a tolerância e sensatez que deveria se ter, haja vista os escritores perseguidos, que vivem sob constante proteção policial, e os cineastas e jornalistas censurados e mortos brutalmente por fanáticos. Não se produz um diálogo intercultural sem aceitar a premissa de poder ser criticado e questionado. Sem isso, retornaremos a um passado não muito distante onde os sectarismos e as intolerâncias prevaleciam e ditavam os limites e direitos de cada um, reforçando ainda mais a polarização cultural e supostas incompatibilidades entre Ocidente e o universo islâmico. Mais do que uma importação de instituições, somente através do diálogo intercultural, não necessariamente para produzir consensos, mas para produzir questionamentos e reflexividade mútua sobre si mesmo, sua cultura e sobre a convivência, é que podemos de fato imaginar a superação dos obstáculos etnocêntricos, discriminatórios, políticos e sociais que bloqueiam a efetividade de uma existência social plural, pacifica.