Em defesa da crítica e da sátira à religião
Não, não estou comparando o semanário satírico francês com o coletivo brasileiro. Além das diferenças em termos de linguagens e de meios técnicos distintos, o Charlie Hebdo já usufrui de uma história consagrada e consolidada no jornalismo e no humor. Nem também estou afirmando que os processos e petições online levadas a cabo por evangélicos fundamentalistas contra a exibição dos vídeos e dos esquetes ácidos do Porta dos fundos se equivalem aos atentados à sede da revista e o assassinato de vários de seus integrantes na última quarta-feira. Também não estou sugerindo que o Brasil está próximo de experimentar uma tragédia semelhante. Muito longe disso. De todo modo, este fatídico episódio não deve passar sem que pensemos nele a partir do que vivenciamos no Brasil em termos de fundamentalismo religioso.
A sua maneira, ambos os grupos de humor se notabilizam por suas críticas e sátiras impiedosas à religião, por ironias afiadas e hilárias contra figuras religiosas, estórias sagradas e fundamentalistas; e, por atingirem o âmago daquilo que muitos consideram “intocável”, sofrem retaliações e tentativas de censuras por parte de grupelhos religiosos radicais. Por isso, compartilham um contexto de questões e sentimentos em comum, em que liberdade de expressão, intolerância e irracionalismo se confrontam. Mais importante, eles se inserem numa dimensão mais profunda, que é de extrema relevância na atualidade. Seu humor e o incômodo que causam colocam em teste a vitalidade e a força de nossa adesão às instituições e valores modernos, democráticos e pluralistas. E é exatamente nesse ponto que cumpre aproximá-los, defendê-los contra os fundamentalistas e extrair lições da tragédia bárbara que se abateu contra o semanário francês.
O Charlie Hebdo e o Porta dos Fundos não apenas conduzem, nas sociedades multiculturais em que vivemos, a liberdade de expressão e de crítica a uma importante prova, eles prestam um inestimável serviço à cultura moderna e, a meu ver, à própria religião para que esta não seja tomada de forma absoluta e como estando acima de todas as coisas.
Grande parte das sociedades estão tornando-se cada vez mais multiculturais, isto é, marcada pela coexistência, nem sempre pacífica, entre tradições e grupos culturais e étnicos distintos numa mesma sociedade. Com isso, os conflitos valorativos e de concepções de vida tornam-se inevitáveis. O “politeísmo de valores” (Max Weber), que caracteriza as sociedades ocidentais, constitui o maior desafio para as instituições modernas; pois como garantir e compatibilizar igualdade de direitos, reconhecimento da particularidade, proteção às minorias, liberdade de expressão e consciência, laicidade face à diversidade de formas de vida, valores e identidades culturais?
Tal, somente é possível pela adesão irrestrita à justificação racional e secular como mediadora dos conflitos entre as diversidades. Isso pressupõe uma capacidade incompatível com o fundamentalismo religioso, qual seja: tomar as normas e convenções humanas (Direito secularizado, Direitos Humanos, Estado constitucional democrático, a Ciência, o pensamento racional, imprensa livre etc.), e não as escrituras e outras revelações supostamente divinas, como base e critério de justiça e verdade para resolver e harmonizar os conflitos e divergências entre as formas e identidades culturais. Em outras palavras, separar política e religião, esta não pode constituir uma base de orientação normativa para a condução da sociedade e da vida dos indivíduos como um todo, o que é exatamente o que o fundamentalismo ambiciona: criar uma unidade absoluta entre fé e todas as demais esferas da vida individual e coletiva.
O fundamentalista religioso rejeita a validade e pertinência do princípio de justificação racional e mediação secular para a manutenção e prosperidade da vida numa sociedade democrática e pluralista. Não é preciso bombas e balas contras prédios e cartunistas para que isso constitua uma ameaça grave, como, fatal e lamentavelmente, assistimos no atentado terrorista a Charlie Hebdo. Basta o ímpeto e a convicção de que é urgente e imprescindível implantar a verdadeira religião e a verdadeira mensagem de Deus em todas as esferas da vida, e que, todos os indivíduos, não importa sua origem ou o que façam, devem conformar suas vidas e atividades aos preceitos e imperativos de Deus e de sua palavra. O Brasil vivencia tal empreitada em que, por meio do parlamento, dos púlpitos, dos programas de televangelistas, o patrulhamento fundamentalista “pentecostal” tenta avançar e se impor para reformar e adequar os costumes e atividades dos indivíduos a seus preceitos e visão de mundo. O fundamentalismo é um projeto integral de transformar o mundo inteiro segundo sua visão exclusiva do que é e deve ser este mundo. Não devemos esperar um atentado com mortes, armas e bombas para combater uma escalada da insensatez, porque “a peste das almas”, como se referia Voltaire ao fanatismo religioso, já se instalou no Brasil como atestam as centenas de ataques aos terreiros de religiões de matriz africana, as tentativas de censuras à atividade artística e de ingerências no ensino secular e nas liberdades civis dos homossexuais.
A atuação de coletivos como Charlie Hebdo e Portas dos Fundos, e a defesa incondicional deles contra a rejeição e ataques que costumeiramente sofrem, faz com que renovemos o compromisso civilizatório, ciente de sua relevância indispensável, com os valores e instituições basilares da modernidade: a visão secular do mundo contra o teocentrismo, o espírito crítico contra os dogmas, a história contra o fatalismo, a ciência contra o obscurantismo, a autonomia individual contra a autoridade inquestionável, a emancipação racional contra submissão à tradição, os direitos do homem e do cidadão e a liberdade de pensamento contra o espírito de seita, a tolerância e o pluralismo contra a intolerância e o monismo. Portanto, assegurar a crítica da religião significa reafirmar as conquistas, no campo dos valores e das instituições, alcançadas pela civilização ocidental em sua luta para consolidar formas mais autônomas de vida, pensamento e ação, porque foi contra a religião como verdade absoluta e intocável que se travou a batalha através da qual boa parte dessas conquistas se tornaram possíveis e reais. A religião condensa, em larga medida, a antítese dos valores emancipatórios modernos.
Se pensado sob o ângulo acima, as sátiras das religiões são remédios coletivos para se prevenir da insensatez do fundamentalismo. São uma terapia coletiva que, com leveza e espirituosidade, ensinam-nos a dessacralizar aquilo que sentimentos neuróticos concebem como sagrados e suprahumano, já que os expõe, sem piedade e reverência, como objeto da troça e do riso humano. Assim, as sátiras humanizam o que se pretende divino, portanto, que estaria fora do alcance dos poderes humanos. Ora, essa é uma ideia e uma atitude ética imprescindível para defender a liberdade e a autonomia frente a qualquer tipo de sistema de ideias e normas, seja religioso, político, filosófico, moral, que queira se impor incondicionalmente e independente de exame e debate racionais. A sátira é a inimiga máxima do poder.
O silenciamento da palavra, por mais profana e ácida que esta possa ser, não deve prevalecer. Que os religiosos ofendidos pela crítica e sátira aos seus ídolos respondam por meio da palavra, das ideias, e, assim, rebatam, com ou sem humor, os seus algozes. A sátira revela a essência da liberdade de pensamento. Por isso, devemos defendê-la contra o belicismo e as censuras dos fundamentalismos religiosos, não importa o grau de violência que utilizam nem a confissão e credo que abracem. As armas da insensatez, sejam elas físicas ou simbólicas, asfixiam e amordaçam paulatinamente a liberdade, o pensamento e a vida.