Religião monoteísta que a exemplo do judaísmo e do cristianismo se originou no Oriente Médio, o Islã se distingue das outras duas religiões por ter nascido “prontamente monoteísta”, conforme as palavras do sociólogo Antônio Flávio Pierucci. Também faz parte de sua “peculiaridade” cultural a configuração de um “Fato Social Total”, expresso no termo islamologista equivalente “Islã Total”, que significa a subordinação de todas as esferas da vida aos imperativos morais do Islã. De fato, embora conserve um parentesco com o monoteísmo universalista judaíco-cristão, o Islã, ao contrário do judaísmo e do cristianismo, parece mais refratário ao “secularismo”, conforme se observa com frequência, a tendência para o casamento entre comunidade religiosa e sociedade política.
Porém, essa “religião de guerreiros”, segundo descrição de Max Weber, não pode ser compreendida adequadamente no presente sem considerar sua história interna. Pois é na experiência passada de seita religiosa inicialmente perseguida que podemos encontrar a gênese da forte disposição para a guerra de alguns de seus adeptos no presente. Assim como os judeus, os mulçumanos também viveram seus dias de “Êxodo”, quando diante da hostilidade e perseguição por parte de lideranças coraixitas e grupos religiosos politeístas, Maomé e seus seguidores precisaram deixar Meca em direção à Medina (na época, conhecida como oásis de Yathrib).
O acontecimento histórico lembrado como Hégira de 622, deixou marcas fortes na espiritualidade da comunidade religiosa mulçumana, dentre as quais, o deslocamento de significado: de uma “profecia ético-escatológica” para uma “profecia político-militar”. Uma profecia político-militar que, posteriormente, em sucessivos acontecimentos históricos de exclusão e perseguição, vai encontrar nos fatos empíricos – as cruzadas medievais, a perseguição aos povos mulçumanos africanos durante a colonização, as incursões militares da Itália fascista, da Alemanha nazista e da União Soviética, os massacres contemporâneos de grupos mulçumanos na Caxemira, na Chechenia e na Palestina – as fontes necessárias para a articulação e renovação do seu discurso de justificação moral/ideológica da violência.
Nessa dialética histórica de experiências de desrespeito e lutas por reconhecimento, nem sempre há espaço para a linguagem da alteridade. Em seu lugar, a palavra de ordem é a da afirmação vital de uma distorcida superioridade étnica/espiritual (embora aos olhares de alguns possa parecer uma comparação exagerada, algo similar ocorre no judaísmo atual, este, cada vez mais inclinado também para o espírito guerreiro-militar).
Essa história de perseguições e negação sistemática de reconhecimento às comunidades religiosas mulçumanas não pode ser negligenciada, pois é nela que germina todos os dias novas raízes do fundamentalismo religioso. Na Berlim contemporânea habitam centenas de famílias mulçumanas, que vivem pacificamente do comercio local, contribuindo positivamente para o enriquecimento da diversidade cultural citadina, a exemplo da oferta de mercados de hortifrutigranjeiros e de pequenos restaurantes nos bairros multiculturais de Berlim. Esses pequenos empreendimentos étnicos são um exemplo da possibilidade de convivência harmoniosa entre culturas distintas. E que agora com a crescente explosão de movimentos nacionalistas xenófobos e neonazistas na Europa, somados aos atos de terrorismo de grupos mulçumanos fundamentalistas, pode sofrer um revés civilizatório.
Uma das consequências da globalização informacional e tecnológica foi o encurtamento da distância geográfica entre distintas civilizações e culturas, possibilitando um potencial de comunicação multicultural e aprendizado moral em escala planetária. Pela primeira vez, vivemos um potencial infinito de enriquecimento estético e espiritual de significados compartilhados. Mas neste tão jovem século, as tentações políticas e culturais de barbárie também são muitas.