No site do Geledés Instituto Mulher Negra (1), foi republicado um texto de Carla Rodrigues, professora de filosofia na UFRJ, sobre a questão de gênero (2). O título, extremamente provocador, anuncia: o (cis)gênero não existe. Como ela mesma declara, a ideia foi reformular a ideia de Judith Butler segundo a qual não existe gênero, a fim discutir a transfobia existente nos setores radicais do feminismo e o fundamento biológico desses setores. Ora, é a partir desse fundamento que as radfems não só usam vocabulários como “fêmea” (para indicar um pertencimento de mulheres cis) e “macho” (excluindo o apoio de homens à causa feminista – e a coisa tá longe de atingir apenas aqueles claramente machistas), mas deslegitimam o acolhimento de mulheres trans* no feminismo. A coisa é tão tensa que duas estudantes da UNICAMP (Amara Moira e Bia Bagagli, esta moderadora da página Transfeminismo no FB), onde foram pichados banheiros com declarações transfóbicas, preferem se alinhar à agenda LGBT (mesmo com as prioridades voltadas para a causa gay) a participar de ambientes feministas, tendo em vista que ali sua pertença ao feminino não é deslegitimada (3).
Mas, depois do preâmbulo acima, deixo que vocês leiam e tirem suas próprias conclusões. Meu foco é outro. Na página do Geledés (4), acusaram Carla Rodrigues de ser desonesta, contraditória e imprecisa. Em um dos comentários, havia a seguinte declaração: “Com tanta violência contra mulheres, claro que temos que nos defender. (foi a forma que as estudantes encontraram de protestar). Afinal, estupradores podem lançar mão desse disfarce para entrar em banheiros femininos, sem causar estranheza. O que o movimento LGBT deve fazer é exigir um banheiro próprio e não colocarem as mulheres em maior risco do que já correm”. Quer dizer: LGBTs só se preocupam com banheiros mistos, né, gente? Na verdade, essas pessoas não se deram ao trabalho de perguntar à autora de onde vinham os pressupostos de seu texto. A única crítica pertinente que vi foi da própria Amara Moira, aludindo ao problema da cisgeneridade a partir designação no nascimento. Não se trata de naturalizar o privilégio cis, mas de questionar o quanto designar alguém como pertencente ao sexo masculino e feminino apresenta privilégios na sociedade – e vedando, por tabela, a participação plena de pessoas que não se enquadram na cisgeneridade. Segue o comentário na íntegra:
“Ai, esse texto é super complicado. Bate nas TERFs, na transfobia, mas diz que o “cis” da questão não existe… o curioso é que o “trans” existe, e ela fala com toda a tranquilidade do mundo das pessoas transgênero o tempo todo. Não existir cis quer dizer que não existe trans? Pq se não existe trans, olha, tou vendo um monte de assombração que me discrimina por uma condição que sequer existe. E discordo frontalmente da maneira como a autora manipula o conceito de “cisgênero”: não se trata de igualar sexo biológico e gênero, o conceito busca, isso sim, apontar para o fato de que qdo nascemos recebemos uma designação, essa designação por sua vez contém um desígnio, e a forma como a pessoa vem a se compreender está plenamente contemplada nesse desígnio. Ou seja, trata-se de ter recebido uma designação arbitrária ao nascer e, no decurso da vida, se identificar da maneira como aquela designação previa, oq proporciona à pessoa um sem-número de privilégios (em relação àquela que não se conformou com esse desígnio).”
À primeira vista, Carla Rodrigues não contempla diretamente esse problema. Ainda assim, antes de acusarmos o texto de Carla Rodrigues de incoerente, contraditório ou desonesto (e assim encerrar este texto), consideremos as seguintes questões como plano de fundo:
1) é porque O gênero não existe que podem existir GÊNEROS. A impossibilidade do gênero único permite, então, o nascimento de múltiplos gêneros (principalmente se pensarmos a raiz de “gênero” tem a ver com nascimento). Gêneros nascem em diversos contextos sociais, históricos, geográficos etc. distintos – de modo que não dá pra nivelar NINGUÉM por baixo. Kathoeys, hijras e pessoas de dois espíritos não são, por exemplo, formas equivalentes de expressão (trans)genérica;
2) tem uma ideia de Derrida, num texto chamado “A lei do gênero”, analisando um texto de Maurice Blanchot, que é extremamente oportuna pra este contexto: “Todo texto participa de um ou vários gêneros”. Essa participação só é possível por causa do ponto anterior – a inexistência do gênero único (ou, como Carla Rodrigues afirmou no texto dela, do cisgênero). Essa participação pressupõe e implica uma contaminação de gêneros, desde sempre – e, da mesma forma que os textos, os corpos também participam de um ou vários gêneros. A não binariedade de algumas pessoas é, nesses termos, a ampliação dessa participação em vários gêneros;
3) o fato de não haver gênero único NÃO QUER DIZER QUE NÃO HAJA VIOLÊNCIA DE GÊNERO! Quer dizer que devemos redimensionar o tratamento da violência de gênero deve evitar cair na naturalização do corpo propagado por radfems (especialmente as TERF, isto é, as que excluem mulheres trans* da agenda feminista), de um lado, e mascus e sanctos, do outro. Devemos tomar cuidado com distinções do tipo amigo-inimigo – principalmente se pensarmos no autoritarismo em que essa distinção incorre. É nessa distinção que se baseiam as pichações transfóbicas na UNICAMP (e o manifesto de Valerie Solanas, by the way) (5);
4) o comentário de Amara, como explicitei acima, questiona a associação entre cisgeneridade e a distinção sexo/gênero, argumentando que o problema se trata da designação arbitrária atribuída às pessoas no nascimento. A cisgeneridade, então, se constitui em privilégio por causa das vantagens que essa designação inclui. Mas aí vem outra questão: a transgeneridade também não seria arbitrária? Ora, a arbitrariedade do signo, se pensarmos com Saussure, parte de uma não correlação natural entre significante e significado. Não está explícito no texto se existe espaço para a questão do nome (isto é, da designação), mas o questionamento que ele propõe também dá algumas pistas para o questionamento da designação cisgenérica, na medida em que a própria Carla Rodrigues assevera que o gênero “é uma construção social a partir da qual não se pode evocar uma ideia de normalidade ou adequação”. Da mesma forma que não existe gênero único, também não há nome único. Ou seja, o tratamento do problema do nome, se a gente levar às últimas consequências, não só implica o desmantelamento do privilégio da cisgeneridade (6), mas também contribui para aprofundar a questão da transgeneridade (principalmente para pessoas trans* não binárias), na medida que o problema do nome também assume a forma do problema de reconhecimento na sociedade.
P.S.: relendo o texto de Carla Rodrigues, percebo que estou enganado quanto ao não questionamento da cisgeneridade: “Depois de tantos anos lutando contra a distinção binária masculino/feminino, construída como hierárquica e dicotômica, não faz sentido erguer um novo par opositivo – cisgênero/transgênero – para sustentar exclusões, como se a uma pessoa fosse perfeitamente possível estar ‘de acordo’ com seu sexo e com as expectativas das convenções sociais”. Essa recusa da oposição cisgênero/transgênero é um ponto de partida para questionar o privilégio da cisgeneridade – privilégio arbitrário, simultaneamente convencionado e abusivo. Acredito, assim, que Amara e tantas outras pessoas marginalizadas pela cisgeneridadade possam ter alguma esperança a partir do texto.
(1) http://www.geledes.org.br/o-cisgenero-nao-existe/
(2) http://www.blogdoims.com.br/ims/o-cisgenero-nao-existe. Aqui vai o blog de Carla Rodrigues: http://carlarodrigues.uol.com.br/
(3) Super vale a pena ler a entrevista na íntegra: http://www.ladobi.com/2014/12/apos-pixacoes-em-banheiros-alunas-transgenero-da-unicamp-dizem-que-transfobia-e-feminismo-andam-juntos/ É, ao lado da entrevista com Sofia Favero (http://www.nlucon.com/2014/08/travesti-reflexiva-sofia-favero-transfobia.html), a sergipana moderadora da Travesti Reflexiva no FB, uma das melhores entrevistas que li em 2014.
(4) https://www.facebook.com/geledes/posts/10152420672251816″
(5) Existe uma tradução para o português aqui: http://scummanifesto.wordpress.com/ Engraçado que Solanas não pareceu ver a proximidade de seus argumentos com os movimentos totalitários engendrados por homens mundo afora. A distinção amigo-inimigo presente no texto de Solanas – horribile dictu – é basicamente a mesma elaborada por Carl Schmitt em “O conceito do político”. A diferença entre Solanas e Schmitt é só a dicotomia: o jurista alemão associava a distinção amigo-inimigo à distinção público-privado, de modo que inimigo é, por definição, inimigo público, do Estado, devendo assim ser destruído; Solanas preferiu a distinção fêmea-macho, situando o macho como inimigo das mulheres em todos e quaisquer espaços.
(6) “O que é cisgênero?” – texto esclarecedor (para mim também, inclusive) sobre os efeitos do privilégio da cisgeneridade pelo mundo afora http://transfeminismo.com/2014/03/23/o-que-e-cisgenero/