Por Berenice Bento
(socióloga e professora do Departamento de Ciências Sociais UFRN)
“O Nordeste sempre foi retrógrado, sempre foi governista, sempre foi bovino, sempre foi subalterno em relação ao poder, durante a ditadura militar, depois com o reinado do PFL e agora com o PT. É uma região atrasada, pouco educada, pouco instruída que tem uma grande dificuldade para se modernizar na linguagem. A imprensa livre só existe da metade do Brasil para baixo. ” (Diogo Mainardi, no programa GloboNews, acerca das eleições eleições presidenciais, em 26/10/2014).
Após esta “avaliação” pensei em resgatar fatos históricos para mostrar a falsidade dos não-argumentos do Sr. Mainardi: o primeiro voto feminino aconteceu no Rio Grande do Norte, ou, a primeira cidade a libertar as pessoas que eram escravizadas foi Redenção, cidade do interior do Ceará, ou ainda, listar nomes de nordestinos/as fundamentais para a construção do projeto de Nação. Contudo, se eu seguisse por esta linha estaria reproduzindo, de forma defensiva, a mesma lógica argumentativa que atribui valor (ou desvaloriza) aos fatos ou às pessoas por serem de determinada região. Ao fazer isso eu terminaria por me enredar e legitimar a mesma estrutura discursiva do comentador da Globo News e que tem como fundamento o determinismo geográfico. Ao contrário, é necessário desconstruir sua fala, afirmando que a diversidade humana não está limitada a uma fronteira, ou a uma cerca, porque não somos gado.
O tropo “região” foi uma poderosa arma retórica utilizada pelos colonizadores. Se supunha que a pessoa era o resultado do meio ambiente natural em que nascia. Assim, se eu digo “sou nordestina”, eu me revelo por completo, pois a verdade inteira e última da minha existência já está dada por esta anunciação: o local de nascimento. Seríamos todos Macabéa, personagem do livro A Hora da Estrela. Por esta lógica, não há diversidade, diferenças, uma vez que a região condiciona comportamentos, subjetividades, culturas, homogeneizando-nos ao ponto de nos tornarmos membros de uma mesma espécie. É isso o que o Sr. Mainardi faz: reproduz a ideia de uma espécie chamada nordestino. Aliás, na sua estrutura de pensamento colonizador, ele nem se dar ao trabalho de falar “nordestinos/as”, mas “nordeste”, região povoada por gente que não sabe falar, submissa, atrasada, uma manada.
Em apenas 46 segundos ele repete a palavra “sempre” quadro vezes, para que não paire dúvida de que naquela região a história esqueceu de acontecer. É o tempo parado, morto, o desde sempre dos coronéis, da tradição. O sudeste e o sul, ao contrário, é identificado como os locais onde as mudanças ocorreram e os seres se tornaram inteligentes e modernos. O Nordeste tem natureza. A metade do Brasil para baixo tem cultura.
Há tempos que eu não escutava um libelo do pensamento colonizador, em pleno século XXI, com tamanha clareza e sem nenhuma ruborização facial do comentador. Sem dúvida, merece ser discutido e debatido nas aulas de Sociologia como exemplo de uma sobrevivência discursiva, resgatada com toda a ferocidade que o desejo etnocêntrico tem em controlar e eliminar o outro considerado diferente e inferior.
Contraditoriamente, o sabido, civilizado, moderno, educado e bem falante, Sr. Mainardi, teve que lançar mão de um discurso que vigorou há séculos e que foi uma das principais bases de sustentação do colonialismo e que hoje está em completo descrédito. Se trocarmos a palavra “nordeste” por “Brasil”, teremos uma citação do que os europeus pensavam das culturas colonizadas que foram destruídas por eles. Quem é o retrógrado?