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Dilma e a falácia do inchaço curricular

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images (9)Não é novidade a afirmação de que a educação, e, em particular, a educação básica é um dos principais gargalos para o Brasil e seu desenvolvimento. Por isso, quem quer que se candidate à presidência da República deve enfrentar esta tão espinhosa e complexa questão que abarca diferentes dimensões; desde as mais diretamente escolares, como o investimento na criação e consolidação de uma infraestrutura moderna para as escolas, um currículo nacional mais detalhado, maior valorização dos docentes, formação dos professores, integração de modalidades de ensino etc., até questões, em certo sentido, extra e pré escolares, tais como a desigualdade social e seus efeitos na formação das capacidades cognitivas, a pluralidade cultural e os conflitos ligados à diversidade da sociedade brasileira, as demandas e as características do mundo do trabalho, entre outras.

Nos últimos dias, a presidente e candidata Dilma Rousseff intensificou em sua campanha a necessidade de reformular o currículo. E, a julgar pela entrevista dada ao Bom dia, Brasil (22/09/2014) da rede Globo sua proposta caminha em direção a um enxugamento das disciplinas ou sua integração e diluição em grandes eixos temáticos mesclando matérias em grandes áreas. Afirmou Dilma:

“O jovem do Ensino Médio, ele não pode ficar com 12 matérias, incluindo nas 12 matérias como Filosofia e Sociologia. Tenho nada contra Filosofia e Sociologia, mas um currículo com 12 matérias não atrai o jovem. Então, nós temos que primeiro ter uma reforma nos currículos”.

Há diversos equívocos nesta declaração. O primeiro deles é a homogeneização da figura do “jovem”, como se este fosse um sujeito bem definido e unitário em seus interesses e expectativas, e, desse modo, não existisse, com efeito, uma pluralidade de diferenças e particularidades sociais, econômicas, regionais, étnicas que singularizam e diversificam o ser jovem na sociedade e escolas brasileiras. Um currículo que não leve em conta a alta diferenciação da juventude contemporânea já nasce fadado ao fracasso.

Segundo, não convence de modo algum a ressalva da presidente Dilma Rousseff quando, curiosamente, menciona Filosofia e Sociologia como exemplos do excesso da grade curricular do ensino médio e, em seguida, afirma na mesma sentença não ter nada contra estas disciplinas. Soa hipócrita e desrespeitoso a inteligência das pessoas. Ora, o simples fato de enunciá-las para comunicar o inchaço do currículo e a pouca atratividade da grade, já é suficiente para deduzir que ela também não possui muito a favor dessas disciplinas, de sorte que, vindo da presidente da República, tal declaração somente reforça a situação historicamente instável e pouco prestigiosa dessas disciplinas na realidade escolar, dificultando ainda mais a aceitação e reconhecimento social enquanto saberes legítimos e socialmente importantes para o país e para a formação dos seus cidadãos.

Por último, talvez o mais gritante equívoco. Vejamos. Que é preciso repensar e problematizar os currículos como forma de atingir mudanças significativas na qualidade do ensino rumo a uma maior excelência na aprendizagem e no ensino, parece-me, um fato inegável. No entanto, equivoca-se enormemente a presidente e candidata quando concebe esta possível reforma por um enxugamento da grade curricular do Ensino Médio, pois o problema não reside na quantidade de disciplinas e matérias, e sim, no que concerne a este particular, na forma de organizá-las e na pouca autonomia e liberdade conferida aos gestores, professores e alunos para dispor e escolher as matérias conforme seus interesses, suas afinidades e expectativas – o que, diga-se, não elimina a necessidade e relevância de uma base nacional orientadora.

Ora, os tidos melhores sistemas de ensino do mundo possuem bem mais disciplinas do que o nosso, tanto no ensino fundamental quanto no médio. Em países como a Finlândia, as crianças tem inclusive aula de culinária, e isto de maneira relacionada aos conteúdos de disciplinas como Ciências, História, Estudos Sociais. Nos EUA, as escolas do ensino médio, desde as mais acadêmicas às mais profissionalizantes (Career and Tecnical Education), adotam uma grade curricular composta por poucas disciplinas obrigatórias e uma variedade de matérias eletivas com focos bem diversos em que professores e alunos são protagonistas na composição do currículo e na combinação das matérias a cursar. Nesse sentido, convivem no mesmo espaço escolar matérias como história da arte, literatura afro-americana, línguas estrangeiras, design gráfico e programação, contabilidade e matemática financeira, economia doméstica, primeiros socorros, marcenaria, astronomia, teatro, empreendedorismo, entre outras mais. Uma reforma curricular, no Brasil, deveria começar exatamente pelo incremento da autonomia de professores e alunos na eleição e combinação de disciplinas, segundo suas aptidões e interesses.

Com mais essa declaração, Dilma Rousseff nos brindou mais uma vez com sua percepção demasiadamente economicista da realidade, a qual enxerga o mundo a partir de sentidos de justiça que priorizam aspirações, competências e resultados que alavanquem números e indicadores de crescimento, de empregabilidade, de ocupação de vagas, acessos, de desempenhos, etc. – não que isto seja algo irrelevante, longe disso, porém, a vida humana e os bens civilizatórios que ela é capaz de criar, aspirar e difundir são bem mais ricos e amplos do que o economicismo suscita.

Temos, portanto, nessa declaração de Dilma a afirmação de uma visão politicamente pobre e intelectualmente estreita, capaz de produzir enormes danos na educação e na vida pública da sociedade brasileira. A elaboração de um documento nacional como currículo escolar é uma política pública que expressa o projeto de sociedade e de cidadão aspirados coletivamente. Não é informada numa visão economicista da realidade que se produzirá as mudanças qualitativas esperadas na educação. A inclusão de mais conteúdos técnicos em detrimento da carga horária e da obrigatoriedade das disciplinas das Humanidades foi uma medida adotada na Reforma dos currículos pela Ditadura Militar. Bem sabemos o resultado e as consequências que isto gerou em termos de compreensão e sensibilidade política, social e histórica do que de fato foi aquele período, assim como em relação aos conflitos, injustiças e desafios atuais.

Uma reforma curricular não pode prescindir da tarefa de fomentar ferramentas intelectuais para a compreensão da sociedade, isto é, de como ela em seus mais diversos aspectos se conecta e impacta a vida dos indivíduos, em suas oportunidades, seus modos de ser e agir, suas aspirações, nos problemas que enfrentam cotidianamente, nas decisões que precisam tomar ao longo de suas vidas, etc.. Sem isso, abortam-se, alias, as próprias condições de reflexão que, por exemplo, uma reforma educacional exige. Não há como mudar uma sociedade e construir as reformas necessárias sem compreender o que conforma esta sociedade e mantêm determinadas estruturas e padrões de relações sociais que tolhem as transformações aspiradas para a vida dos indivíduos e para o desenvolvimento, num sentido amplo, do país.

A pobreza e a estreiteza do economicismo e do tecnicismo de Dilma em educação reside exatamente nesta contradição entre suas intenções e propostas, a qual ela sequer percebe. Dissociar do ensino técnico-profissionalizante ou enfraquecer no currículo do ensino médio as competências ligadas à compreensão da sociedade e do comportamento humano significa abrir mão de uma dimensão cognitiva e formativa fundamental, tanto para enfrentar de maneira coerente as tarefas e desafios que uma sociedade complexa como a brasileira impõe quanto para cultivar as virtudes individuais e valores coletivos que uma nação que se pretende republicana e democrática reclama. Como foi dito, o currículo é a expressão pedagógica de um projeto de sociedade.

Portanto, um erro grave nesse âmbito pode, inclusive, neutralizar os desdobramentos futuros dos importantes investimentos e avanços educacionais que os últimos governos do PT promoveram, especialmente em matéria de acesso e inclusão social ao ensino superior e técnico, de incentivo à qualificação de jovens pesquisadores e melhorias na infraestrutura das universidades.