Sempre estudei no período da tarde, a conveniência da mensalidade mais barata se aliava com minha dificuldade em dormir cedo. Quando criança não havia televisão em meu quarto, tampouco haviam computadores pessoais disponíveis naquela época. Quando os brinquedos não satisfaziam mais era a janela meu maior entretenimento. Tarde da noite, todos dormindo, era a ela que eu recorria, olhava os carros, o vigia, o caminhão do lixo, os gatos brigando, as escapadas do vizinho. Me atraiam especialmente os transeuntes: de onde vinham? Para onde iriam tão tarde da noite? Me indagava com aflição e inveja. Se meus olhos pudessem segui-los quando dobrassem a esquina, lamentava. Talvez venha daí o desejo insaciável de um dia ser invisível. Cresci e cá estou, na sombra dessa árvore, homem invisível, velando o sono da cidade.
Na cabeça pensamentos leves, um coração paralítico e uma alma envolta em um manto cinza, desbotado, ausente de vontade e paixões, sou todo olhos e ouvidos. Não podia perceber, naquele tempo de menino, que um dia seria invisível, mas por dentro. Aprendi desde cedo a me cobrir com o manto da madrugada, discreto, silencioso, sorrateiro. Olhando da janela do apartamento via a rua vazia, os carros escassos, como era bela a cidade adormecida, quando crescesse queria ter essa serenidade, esse ritmo.
A madrugada é o reino da calma, quando a cidade cala, quando a alma fala. Talvez eu tenha lido na adolescência que madrugada compartilha do mesmo radical latino de maturar. Maturo, maduro, madrugo desde então em noites como essa. Se eu madrugo ou Seu Madruga, não importa, é vagabundo, me fizeram crer. Não adiantou muito. Vago o mundo quando posso, vaga-lume sem luz, vou de poste em poste, de rua em rua, sem ser notado.
Já não há mais sonhos, planos, o coração já não bate mais em ritmo juvenil, o que me resta é a madrugada apaziguadora, silenciosa, melancólica. O sinal de trânsito insiste em piscar o mesmo aviso amarelo, lembrando aos poucos que se aventuram que na madrugada não há regras. Aqui, no bucolismo desse terreno baldio, impera o som do vento e dos grilos que calam os carros, abrigando a luz da lua da artificialidade laranja dos postes, brilhando teimosamente para ninguém. Esse terreno sou eu, podado pela cidade.
Já não sei há quanto tempo estou aqui, o tempo parece não existir quando é ignorado. Daqui tenho outra perspectiva, a rua, a árvore, os apartamentos, os quais enxergo todos os dias sem vê-los, me parecem outros, o vigilante com seu apito em riste vigia sem notar que está sendo vigiado. Madrugadas assim sempre fizeram parte de mim, aliás, apenas sou na madrugada, vou mais longe: só me sinto parte afetiva e moral de uma dita humanidade na solidão e nesses momentos de extrema individuação. É na distância que me aproximo das pessoas, é na solidão que me encontro com o humano que há em mim.
Talvez a vida não seja para ser vivida, apenas assistida. Toda vez que tento ser o protagonista as coisas deixam de ter sentido. Assisto então. O tempo passa, as marcas aparecem sem que eu note. Talvez eu tenha parado no tempo, menino arredio que sempre fui, ando escondido em rosto de homem para poder olhar sossegado, sem causar espanto, sem tirar o manto.
Volto à rua acompanhado por carrapichos na calça, moro há duas quadras daqui, a tensão é latente e preciso aflorar meus instintos, não sou mais invisível, sou alvo. Há um jeito certo de se portar na madrugada, uma certa linguagem corporal, uma firmeza no olhar, a madrugada não aceita forasteiros. Principalmente agora que fui delatado pelo latido feroz e flagrante do cão que me ameaça na segurança de sua grade, encarno então a indiferença desse gato preto que imprudentemente rasga os sacos de lixo, alheio ao barulho, afinal a madrugada o protege e ele assim como eu é parte da fauna que habita madrugadas como essa.