Por Ivenio Hermes
A falta de inclinação do homem em buscar a resolução pacífica para seus conflitos de convivência, demandou a necessidade de estabelecer normas e regras para evitar que esses conflitos fossem tomados à letra de antigas leis violentas, retornando à barbárie primordial das tribos pseudo civilizadas.
Se as regras fossem o suficiente para que o homem entendesse seu direito se estende apenas até onde o de seus pares estão, não haveria necessidade de o Estado intervir, mas a desobediência à lei e a tentativa de fugir das consequências de seus atos, redimensionou o pacto de convivência e o Estado precisou surgir com sua força para punir aquele que fosse encontrado em conduta desviante.
A complexidade da ação delituosa gerou a busca pelas especificidades da conduta, sua punição ou não, sua precisa tipificação e todo conjunto de princípios norteadores da aplicação da lei de forma a se fazer justiça às vítimas e seus familiares, evitando que a criminalidade e a violência se disseminasse. Mas o homem continuou a tentar burlar as leis e o comportamento humano e os regramentos para suas condutas precisavam ser analisados e estudados, com vistas à construir saberes que realmente construíssem a paz. Com ênfase na ideia de que a gestão pública deveria ter uma responsabilidade maior do que o simples controle dos números divulgados, Miranda (2008, p. 9) nos adverte que:
“No campo da segurança pública, mais precisamente no que diz respeito ao controle da criminalidade e das violências, função que entendemos ser uma das premissas do Estado-nação, uma gestão que se pretenda moderna não deve abrir mão da Análise Criminal como instrumento otimizador de suas ações, com todas as novidades que o progresso científico-tecnológico pode hoje nos proporcionar. Um de seus objetivos é o de habilitar profissionais na manipulação de softwares estatísticos e de geoprocessamento para a produção e análise de informações necessárias ao planejamento e à execução de políticas públicas de segurança eficazes.”
Foi dessa preocupação com o futuro do país no que se refere ao avanço da criminalidade que, na gestão do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, estudos técnicos foram realizados para entender e assim elaborar políticas públicas que evitassem a mortandade criminosa. As áreas relacionadas à segurança pública, precisavam ser ouvidas e delas obtidas outras respostas.
As inúmeras fontes de onde se obtinha e ainda se obtém dados para a construção de análises sobre a criminalidade e a violência também não estavam devidamente ordenadas e foi quando surgiu a ideia de se aglutinar com os devidos cuidados, informações oriundas do CID-10, das bases e boletins policiais, dos laudos médicos, até se chegar a um método mais didático e eficiente.
Os apegados à letra fria da lei impuseram seu conceito limitado de homicídio para determinar que os dados a serem observados viriam da estatística vítimas de homicídio doloso, latrocínio e lesão corporal seguida de morte, esquecendo outros crimes e inclusive fatores sociais, educacionais, étnicos e tantos outros que seriam necessários para a criação de uma verdadeira política de impedimento da proliferação do crime, e não somente o combate recrudescente da criminalidade que desencadeia mais violência. À guisa do uso apenas da norma legal tipificadora de condutas criminosas, gestores deixaram de contribuir para a diminuição do crime e ampliaram a margem de segurança para o crescimento de grupos de justiceiros que surgiam de dentro das forças policiais, que usavam a lei e se ocultavam usando as excludentes de ilicitude, nesse caso, o estrito cumprimento do dever legal.
O problema estava no “uso legal restrito” do termo “homicídio” que dava aos estados sem compromisso com o cidadão, a ferramenta ideal para lançar uma cortina de fumaça sobre sua responsabilidade, conforme nos diz Cappi, Guedes e Silva (2013 – pg 5):
Para poder apresentar índices mais favoráveis, os Estados criam suas próprias regras sobre o que pode ou não ser considerado homicídio, construindo estatísticas de pouca credibilidade e que dificultam especialmente a comparação da eficiência e da eficácia da atuação das forças de Segurança Pública dos Estados.
Contudo, analistas, cientistas sociais e jurídicos, e legítimos operadores de segurança publicaram, atentos ao problema, iluminaram o cenário da segurança pública, mostrando que o que estava sendo mensurado eram apenas alguns pontos da violência letal, sem consistência para criar meios de frear a criminalidade.
Ao lançar o PPV (Pacto Pela Vida), a política de segurança pública que visa deter e diminuir a violência e a criminalidade, Eduardo Campos e sua equipe foram ao cerne do problema para evitar a divulgação de números incorretos e destarte, não obter o êxito almejado. E sobre esse cuidado (com grifo nosso acrescentado) De Lima et al (2012, p. 31 NR) comentam:
Em Pernambuco a estatística de mortes violentas intencionais inclui todos os casos que, pela sua tipicidade, se enquadram nas definições legais dos crimes previstos no indicador CVLI. Desse modo, não são realizadas considerações jurídicas acerca de excludentes de ilicitude dos atos típicos ou acerca da culpabilidade dos seus autores. Consequentemente, casos de homicídios perpetrados por cidadãos motivados por legítima defesa ou de terceiros; casos de estrito cumprimento do dever legal protagonizados por policiais ou homicídios/latrocínios cometidos por adolescentes (considerados legalmente inimputáveis e, portanto, isentos de culpa jurídica) são incluídos no indicador CVLI.
Ora, o prisma sob o qual a violência e a criminalidade precisam ser observadas precisa de transparência para: primeiro, não embaçar a visão do gestor, da população, da mídia e das entidades protetoras dos direitos humanos e, segundo, não ser utilizado de maneira leviana pelo gestor que pretende apresentar números ou escondê-los, no intuito de proteger suas ações ineficientes, como ocorreu no sudeste em que de um ano para o outro houve uma sensível diminuição dos homicídios, diferentemente da percepção da imprensa, dos pesquisadores e da própria população, sendo que ao se analisar os “novos números”, descobriu-se que, de uma hora para outra o gestor escolheu não divulgar mais as mortes oriundas de confrontos, os cadáveres encontrados com características de violência, ou que não possuíam a devida substância pericial para identificação da causa da morte, e que confortavelmente passaram a ser apresentados sob o título “a esclarecer”.
A subnotificação é fato notório nos estados brasileiros, problema mais comum no Norte e no Nordeste, e que deve ser combatido e nunca incentivado, sendo inclusive a Meta 1 da Enasp (Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública), que imputa aos gestores públicos a tarefa de “Diagnosticar as causas e combater a subnotificação dos crimes de homicídio”, e que fique bem claro, que nas próprias reuniões onde os gestores foram informados que o conceito a ser tratado seria o CVLI e não homicídio, cujo termo era utilizado apenas por ser de uso comum, inclusive, sobre o questionário para o diagnóstico vinha assim esmiuçado (com nosso grifo acrescentado):
O questionário quer identificar informações como a origem dos dados entregues às instituições que registram a ocorrência de mortes violentas ou suspeitas, a forma como são registradas as mortes originadas de confrontos com a polícia e os principais motivos para não comunicar a morte violenta à autoridade policial, entre outros. Os dados serão compilados pelo CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público)
A atitude do governo em não informar os dados estatísticos dos crimes, que ao invés de gerenciar a crise na segurança pública, gerenciava sim, a divulgação das estatísticas, quando divulgava, numa intenção disfarçada de tentar manter o status quo do governo, é o retrato disforme da subnotificação assinada pelo próprio Estado. E não se pode mais ser induzido ao erro em se tratando de elementos essenciais para a elaboração de diretrizes para serem trabalhadas pela segurança pública e seus coatores transversais e multidisplinares.
Homicídio ou CVLI, homicímetro ou Cvlímetro, são apenas termos para denominar e mensurar uma doença, e já não importa mais termos ou nomenclaturas e sim a essência do mal que se pretende anular, e esse mal sim, ele tem nome e sobrenome bem gravado na mente das vítimas diárias e cotidianas: crime e violência!
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SOBRE O AUTOR:
Ivenio Hermes é especialista em políticas e gestão em segurança pública e escritor ganhador do prêmio literário Tancredo Neves; colaborador e associado pleno do Fórum Brasileiro de Segurança Pública; consultor de segurança pública da OAB/RN Mossoró; pesquisador da violência homicida no Rio Grande do Norte para o COEDHUCI/RN, e publica artigos com ênfase na área de criminologia, direitos humanos, direito e ensino policial.
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REFERÊNCIAS:
MIRANDA, Ana Paula Mendes de [et al.]. Análise Criminal e o Planejamento Operacional / Organizadoras Andréia Soares Pinto e Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro; Coordenador Mário Sérgio de Brito Duarte – Rio de Janeiro: Rio Segurança, 2008.
DE LIMA, Renato Sérgio, et al. O quebra-cabeça dos dados nas políticas de segurança. organização Júlia Loonis Oliveira, Mariângela Ribeiro, Edna Jatobá. – Recife : Provisual, 2012. 64p.
CAPPI, Carlo Crispim Baiocchi; GUEDES, Flúvia Bezerra Bernardo; SILVA, Vinícius Teles da. Importância da Adoção de um Modelo Único de Contagem dos Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI). Conjuntura Econômica Goiana, Goiânia Go, v. 5, n. 27, p.103-113, dez. 2013. Mensal.
ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO. CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. (Ed.). Subnotificação de homicídios: Meta 1: Gestores têm até junho para entregar questionários. 2014. Disponível em: < http://bit.ly/1tcTc0X >. Acesso em: 03 fev. 2014.
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HERMES, Ivenio. Do Homicímetro ao Cvlímetro (Parte 1): A Subnotificação Assinada Pelo Estado. 2014. Disponível em: < http://j.mp/1n4XQrS >. Publicado em: 18 ago. 2014